Introduzindo o tema

AutorMárcio Túlio Viana - Raquel Portugal Nunes
Páginas15-48
1. inTroduzindo o TeMa
— Deem o seu veredicto! — ordenou o Rei aos jurados.
— Ainda não! Ainda não! — interrompeu o Coelho
— Tem ainda um montão de coisas antes disso!
(CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas)
No início do século passado, pesquisando os contos de fada, um autor russo(1)
concluiu que os personagens exercem sempre as mesmas funções. Há, por exemplo,
o malvado, que faz injustiças; a vítima, que clama por ajuda; o herói, que repara
o crime. Outros elementos também se repetem, como os meios de que o herói se
serve para salvar a vítima.
Se nos lembrarmos de nossa infância, veremos que em quase todas essas his-
tórias há trapaças e violências, perdas e traições, magias e encantos. Mas como o
final deve ser feliz, a maldição que faz o príncipe virar sapo nunca dura para sempre.
Do mesmo modo, há uma espécie de enredo no processo judicial. Este en-
redo enlaça o mundo da razão com uma esfera irracional, sensível, e às vezes tão
ilusória quanto um conto da carochinha. E cada um de seus personagens exerce
funções precisas.
Tal como em Branca de Neve, temos uma introdução (um “era uma vez”),
quando um personagem descreve as suas dores, e o outro se defende como pode;
há o malvado, que no caso são ambos, cada qual visto assim pelo outro; e entre
os dois se mete o herói — no caso, o juiz — que enfrenta desafios (alguns deles
pessoais) para realizar seu papel.(2)
Nesse mesmo ritual, há ardis e agressões, medos e alívios, esperanças e tra-
gédias. E também há traços de magia, escondidos por entre os gestos, posturas,
tatos, objetos, palavras, cores, sons, silêncios e cheiros. Tudo isso antecipando a
batalha decisiva, resolvida pelo herói.(3)
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O Segundo Processo
Ainda como nos contos de fada, no processo há valores em jogo, e o Bem
promete vencer o Mal — desde que todos sigam o roteiro. Também aqui, na apa-
rência, há um traço de magia, impedindo as injustiças — para que o príncipe não
se torne um sapo para sempre.
Curiosamente, tanto nas histórias de fada, como na história do processo,
homens e bichos têm estado juntos: em suas aventuras, Alice conversava com
o Coelho Branco, assim como já houve juízes que julgaram outros bípedes ou
quadrúpedes.
Conta-se que certa vez, por exemplo, o prior de um mosteiro quis exterminar
os ratos que infestavam sua cozinha. Mas teve antes de nomear-lhes um advogado,
segundo o costume da época, e foi graças a ele que os ratos escaparam da morte.(4)
Outros bichos foram condenados a duras penas, como o galo que feriu uma
criança, um macaco que fez não se sabe quais artes, um papagaio que insultou o
vizinho, um outro que dizia palavras “de alta traição” ao Império Austro-Húngaro...
Na Idade Média, muitos morreram no fogo, acusados de bruxaria.(5)
Desde há alguns séculos, porém, o processo judicial vem tentando parecer
lógico, científico, imune às influências e crendices; quase uma máquina de fazer
sentenças, não muito diferente das outras incontáveis máquinas que vêm acompa-
nhando sua própria evolução.(6)
Em teoria, nesse processo só entra o que a lei filtra, seleciona e ficha. O que
ela quer não é a verdade pura e simples, mas a verdade que emerge de seu ri-
tual — ainda que, no fundo, possa não ser tão verdadeira assim...(7) E tudo sugere
igualdade, isenção, neutralidade.(8) Se um fala, o outro rebate; um e outro podem
provar o que dizem;(9) se o juiz erra, recorre-se.
Além de exibir seu poder, a Justiça quer parecer justa — seja por seus modos,
seja por seus símbolos(10), que “em seu silêncio (...) falam mais que os longos dis-
cursos do juiz”.(11) Tal como faz o marketing(12), ela quer (e precisa) nos seduzir,
passando uma imagem ideal. Não à toa, nas estátuas ou pinturas, sempre posou
serena, tranquila, acima das fraquezas humanas.
Também por isso, em tempos longínquos, a Justiça procurava a sombra das
árvores(13), o alto dos montes, as fontes de água ou o interior das folhagens.(14) Era
um modo de se mostrar à parte, isolada, protegida, distante do caos do mundo,
alheia às suas influências.(15) Do lado de fora, a selvageria; do lado de dentro, a
“recriação da ordem”.(16)
No entanto, assim como os contos de fada escondem outros enredos, às
vezes cheios de preconceitos — os feios sempre maus, os belos sempre bons(17) —,
o processo (ou a Justiça) está longe de ser apenas o que aparenta. Aliás, às vezes,
torna-se o oposto do que promete ser, sem que o percebamos bem — e sem que
os seus atores tenham sempre culpa nisso.
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Márcio Túlio Viana/Raquel Portugal Nunes
Desse modo, por exemplo, embora a sentença assuma a forma de algo muito
racional, é possível que o juiz já tenha se decidido antes mesmo de decidir... Conclui
primeiro, para fundamentar depois, como aliás fazemos todos nós, em nosso dia
a dia,(18) e ao contrário do que tentam fazer os cientistas, em suas elucubrações.(19)
Mas não é só. Mesmo o mais metódico dos juízes não deixa de inserir na
sentença traços de seus valores, ideias, sonhos ou delírios. Cada vez que interpreta
e decide ele traz o seu eu interior, atravessado pelo mundo exterior e pelas cenas
que desfilam na sala.
Ainda que invoque mil argumentos, o pingo d’água que faz o juiz decidir pode
ser — no limite — a mais pura das emoções, disfarçada pela mais racional das razões.
Por isso, na Grécia antiga, os julgamentos aconteciam à noite. Acreditava-se que
assim o juiz não seria afetado pelas expressões alheias, nem traído pelo coração.(20)
E a memória também nos trai. Não apenas nos esquecemos, como recons-
truímos os vazios.
Desse modo, por exemplo, o historiador que irá descrever, no futuro, o que
vem acontecendo no Brasil irá selecionar, filtrar, escolher; e a história que ele contar
será também a sua história — com todas as suas circunstâncias pessoais, especial-
mente se tiver vivido o que vivemos.
Como ensina Ferrajoli, a verdade que o juiz emite é também apenas aproxi-
mativa, mesmo porque depende, em boa parte, de uma opinião. A subjetividade
entra sempre em cena. Até a testemunha cujas palavras ele interpreta é, por sua
vez, intérprete de outros fatos, que podem incluir outras palavras...(21)
Desse modo, se o juiz hoje acredita mais numa testemunha que em outra, ou
se descobre na lei certo sentido e não outro, é possível que as coisas mudem se
ele estiver em outra cidade, ou mal dormido, ou em meio a um caso de amor, ou
até — quem sabe? — na manhã e não na tarde do dia seguinte. “As leis não podem
deixar de se ressentir da fraqueza dos homens que as fizeram. Elas variam como
eles” — já dizia Voltaire.(22)
Por outro lado, não é à toa que se fala em “atores” do processo. As cenas da
audiência lembram mesmo um teatro,(23) semelhança que tende a crescer numa
sociedade do espetáculo(24) como a de hoje. E este ar teatral vai até o apagar das
luzes, quando o último ator sai da sala. Como descreve Forza,
(...) o advogado que despe a toga é como um ator que sai de cena. É
um ator, mas é também um diretor, ou ao menos um a mais entre os
sujeitos que no processo revestem esse duplo papel.(25)
Nesse teatro, cada qual oferece a sua versão, a sua verdade, enquanto o
juiz — a um só tempo diretor, roteirista, ator e espectador — vai sentindo a sua
sentença. A sala é o palco — com o seu cenário, suas falas, seu guarda-roupa e
seus outros símbolos.
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