A irresistível ascensão do comércio internacional: o meio ambiente fora da lei ?

AutorProf. Dr. Christian Guy Caubet
CargoProfessor Titular do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil).
Páginas1-17

Professor Titular do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil). Pesquisador IA do CNPq. Ex-representante das ONG's da Região Sul no CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente (1997-98). Representante Suplente das ONG's no Conselho Nacional de Recursos Hídricos (1999-2000). Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC (2001-2002).

Esse artigo já foi publicado em diversos periódicos, com título eventualmente alterado: O comércio acima de tudo (e o ambiente fora da lei). Lua Nova. Número 52. Revista de Cultura e Política. São Paulo: Cedec, 2001.p. 151-172.

Page 1

O presente ensaio objetiva esboçar os contornos de uma tendência concreta das relações comerciais internacionais contemporâneas. Essa tendência, hegemônica, almeja excluir os fatores socio-ambientais das considerações que devem estruturar o intercâmbio comercial, por meio de normas jurídicas internacionais.

Essa afirmação e hipótese de trabalho exige algumas considerações preliminares, pois poderá parecer paradoxal ou gratuitamente provocativa. Com efeito, a maioria dos autores costuma afirmar que as exigências de preservação ambiental estão sendo cada vez mais levadas em consideração, para elaborar as normas jurídicas relativas ao intercâmbio comercial e à concorrência. Entretanto, contra a opinião da maioria, tentar-se-á demonstrar que o comércio e as normas jurídicas que o regem, tendem a excluir as exigências do respeito à sustentabilidade, quer seja para a nossa geração ou, a fortiori, para as gerações futuras. Toma-se por referência, quanto à noção de sustentabilidade, a afirmação da Comissão Brundtland: " O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades" (Comissão mundial...,1988:46). Nas condições atuais do crescimento do comércio internacional e do padrão de vida das populações dos países "ricos", o desenvolvimento continua sendo obviamente insustentável: o consumo dos recursos renováveis e não renováveis aumenta. Além disso, a população também está aumentando. Mas toda a ideologia do comércio, toda a doutrina do comércio, a quase totalidade dos estudos sobre o comércio, partem do pressuposto de que as trocas comerciais devem crescer. Page 2

Dito de maneira diferente, a entropia está aumentando. A entropia, no mundo das ciências físicas, é a medida da desorganização de um determinado sistema; o fato de que tudo esteja inexoravelmente tendendo para a descaracterização de suas propriedades originais, para o caos e a destruição. O direito, por aprovação ou por omissão, auxilia no aumento da entropia, muito embora ele pareça, genericamente, multiplicar seus esforços para identificar também os problemas ambientais e dedicar-lhes soluções. De Ramsar a Kyoto e de Montreal a Basiléia, diversas conferências ou convenções internacionais, recentes ou não, parecem ter semeado as razões de um futuro ecologicamente mais correto. Essas quatro cidades, dentre outras, sediaram conferências ou encontros específicos dedicados à análise de importantes problemáticas internacionais de natureza ambiental, no âmbito de um mundo jurídico pseudo-norteado pelas mega-conferências de Estocolmo (1972) e Rio de Janeiro (1992).

A entropia acelera-se, porque o mundo, apesar de notáveis esforços retóricos, continua acentuando suas características e relações reais: continua sendo financeiramente total, economicamente global, politicamente tribal e ecologicamente letal. Continua subordinando as questões éticas, políticas e socio-ambientais, ao imperativo absoluto e constantemente, obstinadamente reforçado, das exigências do comércio internacional.

Esse texto tratará de evidenciar como o comércio, por postulado ideológico e práticas reputadas acima de qualquer suspeita, está "naturalizado" e utilizado como referencial absoluto, indiscutível, inquestionável, a pairar acima de considerações de quaisquer tipos. Em caso de divergência entre as necessidades do comércio e as de outras atividades humanas, aquelas têm primazia. Impõem sua lógica às demais. O postulado da primazia do comércio não pode ser discutido, por ser um dogma; só pode ser justificado, apoiado, legitimado. O sistema mundial do comércio não previu espaço (apesar de pouco convincentes aparências) para examinar os limites que ele deve respeitar. Ele não admite limite . O direito é um dos meios privilegiados para garantir esse resultado (o de não estabelecer limites definidos), quer seja nas relações internacionais, quer no âmbito interno dos diferentes países.

A exposição da temática apresentará, em primeiro lugar, a caracterização da ideologia do comércio. Em seguida, evocará o quadro global da entropia. Depois, examinará alguns dos parâmetros da proteção do meio ambiente pelo Direito Internacional Público, através de tratados específicos (3ª parte). Finalmente, serão apresentados alguns raciocínios específicos dos operadores jurídicos desta área.

I- O Comércio acima de tudo

O espantoso aumento das trocas comerciais internacionais, após o fim de segunda guerra "mundial" (1939-1945) e com o advento do reino do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), passou a integrar de tal maneira a nossa cultura, que sequer costumamos pensar o significado global do fenômeno, em termos de impactos determinantes das condições sociais, da qualidade de vida e de outros parâmetros essenciais. O comércio não é considerado pelo que pode representar como meio de realizar algo, e sim como um valor em si, uma referência absoluta com conotações positivas ou negativas a partir do próprio fenômeno. Nessas condições, a atitude normal da maioria dos analistas consiste em postular a necessidade da inevitável expansão comercial mundial, como objetivo incontestável, acima de qualquer possibilidade de crítica séria. Page 3

De um ponto de vista crítico e ecológico, por exemplo, não há a mínima dúvida de que fenômenos como crescimento econômico contínuo, generalização dos padrões de vida das populações do hemisfério norte e bem-estar socio-ambiental (ou: qualidade de vida de tipo norteocidental/G7, para todos os habitantes do planeta) são objetivos incompatíveis entre si, mesmo que a população permaneça estável; o que ainda não é o caso. Contra este tipo de evidência crítica, cientificamente comprovado e portanto insuscetível de refutação, só cabe içar a necessária primazia do comércio à condição de dogma: o comércio é intocável, o resto deve ajustar-se e o conjunto só poderá melhorar.

A ideologia dominante induz esse tipo de consideração, mesmo quando pretende apresentar-se como reflexiva ou indagativa. Neste sentido, far-se-á referência a uma obra paradigmática, editada pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo: Comércio e Meio Ambiente. Direito, Economia e Política (1996), editada com o apoio do CIEL -Center for International Environmental Law-. Por se tratar de obra de órgão dedicado à defesa e proteção ambiental, com o apoio de uma ONG preocupada com a defesa do meio ambiente, poder-se-ia pensar que certa ênfase seria dada ao meio ambiente, no sentido de fazer com que ele fosse considerado como uma referência à qual as exigências do comércio devessem curvar-se. Entretanto, o consenso embutido nessa coletânea opera da maneira exatamente inversa: a quase-unanimidade dos seus dezoito autores esmera-se em demonstrar que as considerações relativas ao meio ambiente não devem ter por efeito de prejudicar o comércio ou o crescimento econômico; ou que esses não têm impacto significativo sobre as questões ambientais; ou que todos os fenômenos são compatíveis; mesmo que ditos autores usem demonstrações ou citem fatos que, eventualmente, contradigam essas premissas dogmáticas.

Segundo Jagdish Bhagwati, auto-retratado como um "bom intelectual liberal", "os conflitos existentes entre ambos os grupos [os ambientalistas e os partidários da liberalização do comércio] são largamente exagerados" (Governo do estado de São Paulo, 1996 (2) p.58 seq.). Aliás, como "obviamente nenhuma conclusão genérica deve ser baseada em outros casos de poluição, pode-se afirmar que o crescimento econômico não está intrinsicamente ligado, quer à degradação, quer à melhoria das condições ambientais"(p.59).

Pensamento isolado, esse? Sigrid Shreeve , ao apresentar uma visão das políticas da Comissão Européia, mostra como é fácil combinar retoricamente os diversos problemas: "Ao atribuir a mesma importância às metas relativas a comércio e meio ambiente, a Comissão reconhece que o desenvolvimento sustentável é pré-requisito para garantir que a liberalização seja acompanhada de benefícios ambientais. Da mesma forma, admite que o desenvolvimento ambientalmente sustentável dificilmente será alcançado a longo prazo sem que haja crescimento econômico". Nesse exemplo de contradição, qual é a posição real da União Européia? A resposta deve ser procurada nos fatos e nas práticas. Em particular, as respostas são encontradas na normatização das condutas, realizadas sob a égide das decisões jurisdicionais. Estas não têm dúvida, no âmbito intra-europeu: limitam as exigências ambientais dos países-membros, em prol das exigências da livre concorrência (ver parte IV).

Os porta-vozes dos países em desenvolvimento defendem a mesma posição ideológica: "crescimento econômico, liberalização comercial e proteção ambiental são objetivos compatíveis e complementares", afirma o Embaixador brasileiro Rubens Antônio Barbosa (idem, p.143). O maior problema não é o "como" garantir a sustentabilidade do conjunto das relações envolvidas, a partir Page 4 das capacidades de sustentação dos diversos subsistemas. O que "não podemos admitir, [é que] se ampliem...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT