As interpretações do ius fetiale e a inaplicabilidade de conceitos modernos à cultura romana antiga

AutorLuciene Dal Ri
CargoDoutora em Direito Civil-romanístico pela Università degli Studi di Roma 'La Sapienza' (2009). Mestre em Direito Romano pela Università degli Studi di Roma 'La Sapienza' (2004)
Páginas225-255
As interpretações do ius fetiale e a inaplicabilidade
de conceitos modernos à cultura romana antiga
Luciene Dal Ri1
Resumo: O artigo é de cunho historiográfico
e analisa as interpretações da doutrina sobre
o complexo de normas que constituem o ius
fetiale a partir do século XIX, evidenciando
as diferentes concepções modernas da relação
entre direito e religião na Antiguidade. Como
conseqüência dessas teorias, o ius fetiale
foi e frequentemente ainda é tratado como
estritamente religioso, não sendo reconhecido
como direito, como “direito internacional”,
como “direito público externo”, ou como
“direito supranacional”. Observam-se, nessas
linhas, de um lado a pressuposição do conceito
de “Estado” e a mutilação da realidade histórica,
e de outro a compreensão do universalismo
romano nas especificidades da sua cultura.
Palavras-chave: Ius fetiale. Direito. Religião.
Direito internacional. Direito público externo.
Abstract: This article is a stamp and analyzes
the historiographical interpretations of the
doctrine on the set of rules that constitute
the ius fetiale from the nineteenth century,
highlighting the different conceptions of the
modern relationship between law and religion
in Antiquity. As a consequence of the theories,
ius fetiale was and is still often treated as
strictly religious, not being recognized as a
right, as “international law”, as “foreign public
law”, or “supranational law.” It is observed in
these lines from one side to the assumption
of the concept of “state” and the mutilation
of historical reality, and from the other, the
understanding of the Roman universalism, the
specificities of their culture.
Keywords: Ius fetiale. Law. Religion.
International law. Foreign public law.
Introdução: a importância do ius fetiale
O estudo do ius fetiale, como conjunto de normas, pode ser
considerado um dos principais aspectos para a compreensão das relações
1 Doutora em Direito Civil-romanístico pela Università degli Studi di Roma “La
Sapienza” (2009). Mestre em Direito Romano pela Università degli Studi di Roma “La
Sapienza” (2004) e em Estudos Medievais pela Pontif‌i cia Università Antonianum, Roma
(2006). Professora nos cursos de graduação e mestrado da Universidade Regional do
Noroeste do Rio Grande do Sul e pesquisadora da Fondazione Cassamarca, Itália. E-mail:
luciene.dalri@unijui.edu.br.
As interpretações do ius fetiale e a inaplicabilidade de conceitos modernos à cultura romana antiga
226 Seqüência, no 60, p. 225-255, jul. 2010.
da Roma antiga com outros povos e reis. A importância da atividade
externa romana regida pelo ius fetiale durante o período régio (753-509
a.C.) e aquele republicano (509-27 a.C.) ganha particular importância com
a expansão romana dentro da comunidade latina e posteriormente itálica,
sendo sempre ponto de referência normativo na formação do imperium
dos romanos.
A importância desse complexo de institutos enseja a constatação de
que algumas das suas noções típicas apresentam posterior continuidade
no tempo através de normas presentes nos iura communia/direitos
comuns e nos iura gentium/direitos das gentes (CATALANO, 1990, p.
42). 2 O estudo e a “aplicação” do ius fetiale não se limitou à Antiguidade
e foi visto durante os períodos medieval e moderno como um ponto de
referência e até mesmo como fonte do direito, apesar da variada dinâmica
aplicada no tempo, através da qual guiar as “relações externas” de
diferentes tipos de comunidades, abarcando até mesmo a problemática
relativa à legitimidade teológica e jurídica das “relações externas” do
império e da cristandade (ILARI, 1981, p. 21). Essa concepção começa
a mudar a partir do período moderno quando se observa a tendência em
conceber o direito romano como um exemplum historicum, mais através
de uma óptica liberal e individualista do que como uma verdadeira fonte
do direito (ILARI, 1981, p. 50; BRUSCHI, 2004, p. 27).
As notícias que se têm sobre os feciais são provenientes de epígrafes,
obras de antiquários, juristas e historiadores gregos e latinos. Essas
fontes, primárias e secundárias, são provenientes em sua maior parte do
período clássico (II a.C.-II d.C.) e pós-clássico (II-IV d.C.), muitas vezes
posteriores em séculos aos fatos relatados. Parte-se do pressuposto de que
aquelas sejam confeccionadas com base nos documentos sacerdotais, nas
obras especializadas e no conhecimento comum dos cidadãos romanos
sobre o tema.
A literatura latina torna-se fonte primordial por transmitir fórmulas
e rituais realizados pelos sacerdotes feciais na regulamentação de
2 Neste sentido, é particularmente interessante ter presente, como evidencia Catalano
(1960, p. 593), “[...] l’importanza che per la formazione della tradizione ebbero i
documenti sacerdotali (in particolare i libri e i commentarii)”.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT