Juventude, boemia e movimentos sociais: culturas e lutas estudantis na universidade de Coimbra

AutorElísio Estanque
CargoProfessor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e pesquisador do CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal).
Páginas257-290
Artigo
Juventude, boemia e movimentos sociais:
culturas e lutas estudantis na
universidade de Coimbra
Elísio Estanque*
Resumo
O presente texto recupera trabalhos recentes do autor sobre a juventude
estudantil de Coimbra. Centrado no ambiente universitário coimbrão e
na tradição de uma academia com mais de 700 anos de história, o seu
principal objetivo é o de questionar as tendências da atual juventude
universitária, buscando, através de um olhar atento de um docente des-
de há mais de 20 anos envolvido no ambiente estudantil e no cotidiano
da cidade, identificar subjetividades, lógicas de participação e atitudes
de indiferença/demarcação entre os diferentes segmentos da população
estudantil. Mais do que um registro fenomenológico do cotidiano da aca-
demia, pretende-se capturar experiências do passado e o modo como elas
poderão (ou não) ser apropriadas pela atual geração de estudantes. Por
outro lado, as profundas alterações ocorridas nas últimas décadas, quer
no país quer no sistema de ensino superior português, reorientaram os
comportamentos, as expectativas e as formas de ação da atual população
universitária, levando-a a um distanciamento face a esse passado e a um
“esquecimento” do significado dos movimentos estudantis, que nos anos
60 chegaram a abalar a ditadura de Salazar e Caetano. A reflexão que aqui
se propõe pretende dar conta deste fenômeno, sem deixar de, ao mesmo
tempo, olhar este contexto particular como expressão de outros fenô-
menos mais gerais com que se debatem hoje Portugal e as democracias
europeias no seu conjunto.
Palavras-chave: juventude, universidade, Coimbra, estudantes, movimento
estudantil, movimentos sociais, tradição, boemia.
* Professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e pesquisador
do CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal).
Endereço eletrônico: elisio.estanque@gmail.com.
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Volume 9 – Nº 16 – abril de 2010
Introdução
A
afirmação da “juventude” enquanto sujeito social só ocorreu na
Europa como resultado da consolidação do Estado providência e
da extraordinária expansão do sistema de ensino por ele assegurado.
Para tanto foi fundamental o surgimento da chamada “generation
gap” que se impôs ao longo da década de 60 do século 20. Porém,
a herança histórica desse legado geracional – até por ter sido em
boa medida veiculada por alguns dos seus antigos protagonistas
– acabou por dar lugar a uma espécie de “congelamento” de uma
unidade imaginária dessa geração em torno do chamado “espírito
de 68”, com isso construindo uma identidade histórica fictícia e
dotada de um peso desmesurado, que se tornou impossível de
suportar pelas gerações posteriores (CARDOSO, 2005).1
Esse processo de reconstrução ficcionada do passado cami-
nhou de par com as novas tendências de mudança sociopolítica
no ocidente. Assistiu-se na fase final da “guerra fria”, a processos
de institucionalização, individualização, crise e fragmentação do
Estado social e das economias nacionais, ao triunfo da globali-
zação neoliberal, ao desmoronamento do modelo socialista e à
implosão das utopias que nos anos 60 animaram os movimentos
sociais e estudantis. Mas, apesar da nova realidade ter pulverizado
muitos dos idealismos em torno de uma mítica “rebelião mundial”
promovida pelo radicalismo da classe média estudantil dos sixties,
a sua herança continuou a fazer história, fosse pelas sucessivas re-
leituras que suscitou em torno de novos activismos e movimentos
progressistas (feministas, pacifistas, ambientalistas etc.), fosse pelos
novos rumos que o capitalismo tomou sobretudo após o colapso
soviético. Tiveram uma influência marcante quer no plano cultural
quer no plano político, contaminando os modos de vida de suces-
1 Os resultados empíricos recolhidos através de questionários inserem-se na
pesquisa Culturas Juvenis e Participação Cívica: diferença, indiferença e novos desafios
democráticos, projeto financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecno-
logia/ Ministério da Ciência e do Ensino Superior, nº POCTI/SOC/45489/2002.
Alguns dos aspectos aqui abordados correspondem a adaptações e atualiza-
ções de publicações anteriores, designadamente um livro e dois artigos em
periódicos em que o autor participou.
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Elísio Estanque
Juventude, boemia e movimentos sociais:
culturas e lutas estudantis na universidade de Coimbra
Artigo
sivas gerações e as formas de ação colectiva de velhos e de novos
movimentos, de abrindo espaço a novas concepções, linguagens e
referências ideológicas no plano social e institucional (EAGLETON,
1991; COHEN & ARATO, 1992; EYERMAN e JAMISON, 1991; MELUCCI,
1996; TOURAINE, 1985 e 2006).
Os movimentos de há quarenta anos introduziram rupturas
que ainda hoje se repercutem em múltiplos domínios. Pode dizer-se
que os padrões de gosto desencadeados a partir dos movimentos
juvenis dos anos 60 no ocidente – no plano estético, no vestuário,
na música, nos interesses literários e intelectuais, na expressão da
sexualidade etc. – não só alteraram o cotidiano e os modos de vida
das gerações seguintes como dotaram a esfera pública e política de
novos contornos. A importância da chamada crítica artística (BOL-
TANSKI & CHIAPELLO, 2001) inseriu-se no processo de desconstru-
ção culturalista que esses movimentos imprimiram (EDER, 1993),
alterando até certo ponto a própria natureza do capitalismo, apesar
das respostas que se seguiram – ou por causa delas – sob a ação
canibalizadora das instituições e do mercado, abrindo caminho a
novos valores e novas modalidades de ação colectiva, não apenas
no mundo desenvolvido mas na escala internacional (HOLZMANN
& PADRÓS, 2003; CARDOSO, 2005). Por outro lado, sobretudo após
a queda do muro de Berlim e o consequente colapso do império
soviético, esbateram-se largamente as ideologias que durante mais
de um século inspiraram os principais movimentos sociais sob
formas de ação coletiva inspiradas em modelos utópicos de cariz
emancipatório. No quadro deste processo, as novas tendências do
capitalismo global vêm colocando novos obstáculos e desafios à ação
coletiva, em larga medida esgotando os “velhos” movimentos e ao
mesmo tempo estimulando novas redes e formas mais fluidas de
“alter-globalização” e de ativismo no “ciberespaço” onde importan-
tes segmentos juvenis intervêm permanentemente (RIBEIRO, 2000;
SANTOS, 2004, 2005 e 2006; ESTANQUE, 2006).
É meu propósito neste texto refletir sobre as tendências
recentes no campo da juventude e dos movimentos estudantis,
mas ao mesmo tempo dar conta do contexto de Coimbra, com
referências à tradição, às Repúblicas e também à luta estudantil

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