Juventude, política e peronismo nos anos 60 e 70

AutorCarlos R. Etulain
CargoUniversidade São Francisco
Páginas318-337

Carlos R. Etulain1

    Youth, politics and peronism in the 60's and 70's

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Introdução

E ste estudo trata do surgimento dos grupos de esquerda dentro do movimento peronista, fenômeno que se produziu nos anos 1960 e que muito contribuiu, na década seguinte, com o retorno de Perón à Argentina e com seu último governo.

Aqui se destaca a ativa participação da juventude, num contexto de complexidade extrema, dado encerrar, em poucos anos, quedas de presidentes, golpes de Estado e surgimento de grupos armados. Analisa-se, primeiramente, o contexto político dos anos 60 e, a seguir, o surgimento dos grupos de esquerda dentro do movimento peronista.

Muitos estudos sobre a juventude têm surgido nos últimos anos. Focalizam-se neles aspectos variados da vida, da cultura e dos problemas desse amplo setor da população (WAISELFISZ, 2004; BOUSQUAT e COHN, 2003). Juventude é um conceito de tradição na sociologia (ORTEGA y GASSET, 1989; MANNHEIM e STEWART, 1973; FORASCHI, 1972, dentre os principais) e também é comum se apresentar como um coletivo de precisão estatística2. Neste estudo, a referência ao grupo social da juventude identifica a geração que, nos anos 60 e 70, enquadrava-se aproximadamente nessa faixa etária, mas, mais importante do que a faixa etária, essa geração teve como característica identificadora o fato de ter sido o ator social que mais se destacou por sua forma de pensar e de agir em termos ideológicos e políticos.

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O âmbito de preocupações dos jovens argentinos das décadas de 60 e 70 esteve marcado pelo interesse moral e por profundas convicções políticas e ideológicas. Este trabalho, entretanto, observa que, no contexto histórico da época, o sistema de idéias dessa geração viu-se limitado pela associação da revolução social ou, como os próprios jovens falavam, da "liberação nacional", com a figura de Perón, e, por sua vez, pela associação de Perón com a luta antiimperialista.

Ao falar em movimento peronista, indica-se não unicamente o partido peronista, mas o conglomerado social que se congregou em torno da atração exercida por Perón. O movimento peronista abrangia o setor sindical, o partido peronista e diferentes setores de classe, assim como ramos e organizações, porém, seu peso principal era dado por sua ascendência sobre os trabalhadores e os setores populares.

Os jovens da época foram o setor da sociedade argentina que mais contribuiu para o desenvolvimento do peronismo de esquerda. Suas idéias giravam em torno de um quadro analítico que entendia que a luta dos trabalhadores, mediatizada pela experiência do peronismo, era o ponto de partida para uma luta ainda maior contra os países imperialistas, principalmente os EUA. É que os governos transitórios e a ditadura dos anos 60, com seus mecanismos repressivos e inibidores das várias formas da liberdade civil, não fizeram mais do que promover, nas novas gerações - que liam Marx, observavam os fenômenos político-sociais da Argélia, do Vietnã, da China e, bem de perto, de Cuba -, sentimentos de oposição e interesse pela transformação radical da sociedade argentina.

Contudo e ao contrário do que as novas gerações esperavam e desejavam, essa luta pela liberação nacional, para Perón, significou a luta pela recuperação de seu poder político na Argentina e, nesse sentido, uma luta em várias frentes, mas apenas contra os que o haviam expulsado do governo e do país, em 1955.

Já a esquerda peronista - que era o setor que passou a receber o influxo de jovens que se politizavam nessas circunstâncias -, entendia que a luta deveria ir além disso, dado que Perón, como líder dos trabalhadores, estava obrigado a seguir o curso natural de toda luta verdadeiramente operária, que consiste na abolição do capitalismo. Assim, nesse jogo em que Perón atraía os jovens com mensagens incendiárias, o movimento peronista - muito mais do que a estrutura partidária, um fenômeno social que envolvia diferentes setores da sociedade argentina no pano de fundo de idéias e sentimentos

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configurados desde os anos 40, quando Perón começou a ganhar notoriedade pública - transformou-se no veículo que buscou superar um enigma estabelecido na história argentina, desde que os primeiros partidos de esquerda surgiram em seu solo: o divórcio das idéias revolucionárias com massas. Noutras palavras, o movimento peronista poderia ser o veículo de uma transformação social muito maior do que a estratégia do pão, sindicatos oficiais e da festa popular desatada por Perón, desde os anos 40.

O contexto político e social dos anos 60: Illia, Ongania e a etapa final da proscrição peronista

Uma vez surgido do peronismo na história política argentina, este parece ter se transformado no fato mais difícil de processar. Sua rejeição transformou a política em um processo burocrático estagnado e carregado de descrédito, mas sua aceitação também significou um longo e difícil processo de enfrentamentos. Perón tinha abandonado a Argentina em 1955, depois do golpe de Estado que o depôs. Sindicatos e militares, antigos suportes do poder de Perón, enfrentaram, desde então, profunda crise, que sempre girava em torno de peronismo e antiperonismo.

No caso dos militares, o conflito peronismo-antiperonismo tomou conta de sua estrutura, pretensamente neutra à política. Todos os militares situavam-se como opositores do peronismo. Entretanto, essa oposição instalavase sobretudo entre aqueles que aceitavam incorporar o peronismo (com seus representantes sindicais e partidários) em um diálogo político contido e controlado (eram chamados de integracionistas ou neoperonistas), e de outro lado estavam os que, decididamente, eram antiperonistas, cuja ira só se satisfazia na aniquilação do peronismo. A crise nas forças armadas levou à divisão entre "azules" e "colorados".

Depois do golpe que derrubou Perón sucederam-se governos sem eleições. O primeiro governo eleito pelas urnas - embora com a proibição do peronismo - foi o de Arturo Frondizi (1958-1962), que conviveu com a difícil conjuntura de receber pressões de várias instituições e de vários setores da sociedade argentina. Frondizi sofreu outro golpe de Estado que colocou J. M. Guido, até então presidente provisório do senado, na presidência da República. Guido ocupou o cargo, enquanto a estrutura militar tentava encontrar uma saída para o conflito entre "azules" e "colorados".

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Líder e ideólogo do peronismo de esquerda, John Willians Cooke trabalhava incansavelmente na época, para transformar o movimento peronista em socialista e revolucionário. O peronismo, à luz da posição de Cooke, seria meio para a revolução social. Sua visão do peronismo e sua prática como militante e político buscavam reverter o velho destino da Argentina de manter sempre as massas à margem de teorias e partidos revolucionários. Cooke considerava que, sendo assim, restaria para o movimento a ingloriosa trajetória de todo populismo, ser burguês e ficar submetido a dirigentes de ocasião. Sobre as trocas de presidentes, disse ele na época: "Entre dos miserables les convenía el más opaco e inocuo: Guido" (Informação verbal, apud BASCHETTI, 1988, p. 104).3

O país, politicamente atravessado pela questão do peronismo e sem conseguir superá-la, sujeitou-se a permanentes trocas de presidente. Na política, de um lado, estavam os setores dispostos a fazer alianças com os governos de turno (dentre eles, os peronistas que desejavam obter a legalidade para candidatar-se e que, para isso, aceitavam se apresentar como partidos peronistas independentes de Perón), de outro, ficavam os peronistas fiéis a Perón, que reivindicavam uma abertura política completa, sem restrições a Perón nem ao peronismo.

Perón, desde o exílio, mantinha viva sua presença de líder máximo do movimento. Sobre o presidente Guido, que, por meio do golpe, tinha substituído Frondizi, disse Perón desde o exílio:

El gobierno de Guido fue sólo la consecuencia de lo anterior, se produce en el momento en que las circunstancias demostraron que Frondizi podría malograr los fines y los planes de la dictadura militar, que practicamente venía gobernando desde 1955 [...] Guido fue aceptado de buen grado porque los "altos mandos" se persuadieron de que, por sus escasos valores y falta de personalidad, era el personaje que más se adaptaba a sus inteciones y designios (Informação verbal, apud BASCHETTI, 1988, p.132). 4

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A saída eleitoral foi um jogo complicado para o peronismo no âmbito dos sindicatos - aliados tradicionais do movimento. As posições estavam cindidas. O grupo sindical chamado 62 Organizaciones manteve o ataque direto ao governo, rejeitou a saída eleitoral que excluía Perón. As divergências atravessavam também os vários setores políticos do peronismo. O Comando de Coordinación Superior - cúpula da organização do movimento constituída a partir da derrocada do governo de Perón - estava integrado (cindido, na verdade) por políticos peronistas, que destacavam sua incondicional subordinação a Perón, mas também pelos neoperonistas, que queriam participar de eleições e ganhar cargos políticos sem a presença de Perón (ARIAS e GARCIA HERAS, 1993).

Os primeiros estavam subordinados a Perón, entretanto, representavam a postura mais radical. Incondicionais ao peronismo com-Perón, reafirmavam a estratégia do retorno de Perón à Argentina, como forma de promover uma revolução que teria como líder o autêntico condutor das massas. Para eles, o "Movimiento Peronista en el poder significa la Revolución Nacional" (MILITANCIA, 1973, p. 7).5

Depois de Guido, houve uma nova eleição - também sem o peronismo -, que foi ganha por Arturo Illia, da Unión Civica Radical (UCR), partido político criado no final do século XIX, que tinha...

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