Lacunas no sistema jurídico e as normas de direito tributário

AutorRenata Elaine Silva
CargoDoutoranda e Mestre pela PUC/SP em Direito Tributário. Especialista pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.
Páginas203-212

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1. Introdução

O estudo das lacunas no direito tributário é um tema pouco explorado. A Ciência que descreve as normas jurídicas voltadas ao direito tributário demonstra pouca atenção ao tema, talvez porque o assunto seja próprio da Teoria Geral do Direito e por este motivo sua aplicação pode ser realizada sem complexidade ou necessidade de adequação interpretativa.

Entretanto, como todo assunto do mundo jurídico está em constante dinamismo, para poder acompanhar o próprio direito que é objeto cultural e necessita de uma visão dinâmica correspondente, podemos afirmar que há sim, um campo fértil e prazeroso a ser explorado. Basta um pouco de curiosidade cientifica.

Pois bem. Procuraremos nestas breves páginas fazer uma análise do tema aplicando as premissas metodológicas da Teoria da Linguagem e as normas jurídi-cas do sistema do direito tributário, com o propósito de provocar seus operadores e chamar à atenção para a necessidade de um estudo especializado, que retrate o tema com uma visão comprometida cientificamente, e quem sabe, estimule ricas construções doutrinárias. Vamos a ela.1

2. Direito, sistema jurídico e premissas metodológicas

O direito é um sistema uno e indivisível e tem como função principal disciplinar os comportamentos dos indivíduos e regular as condutas intersubjetivas para que todos possam conviver harmonica-mente em sociedade.

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Não há possibilidade de analisar o tema "lacuna no direito" sem delimitar o sistema no qual as normas estão inseridas, não existe lacuna sem sistema de referência que lhe sirva de suporte, isto porque os temas são imbricados: sistema, norma e lacuna. Resumidamente, podemos dizer que lacuna é a falta de norma abstrata positivada para aplicação a um caso concreto, dentro de um sistema de normas válidas.

O sistema2 que as normas estão inseridas é o sistema do direito positivo, que é formado por normas jurídicas válidas dispostas em uma estrutura hierarquizada, fundada na derivação e fundamentação e integradas pela linguagem prescritiva, única que possui o comando capaz de disciplinar as condutas intersubjetivas.

É importante destacar que todo sistema possui a necessidade de ser aberto para os fatos sociais e fechado em sua disposição formal. Revelando sua estrutura homogênea em termos sintático e heterogênea em termos semântico, necessária para conter em si os fatos sociais que necessitam ser regulados.

Por fim, os elementos filosóficos que utilizaremos para a análise do tema proposto serão aqueles relacionados com a Filosofia da Linguagem, mais precisamente conhecido por "giro linguístico" que passou a ser cientificamente relevante após a segunda obra de Wittgenstein chamada Investigações Filosóficas. Por esse método, toda forma de compreensão se dá por meio da linguagem, não mais como simples instrumento que aproxima o sujeito do objeto, mas como elemento de construção do próprio sujeito e do próprio objeto de conhecimento, passando a ser uma relação de significações (sentidos) entre linguagens.

3. Espécies de lacunas

O tema lacunas pode ser analisado sob vários aspectos, doutrinariamente encontramos várias espécies de lacunas, cada qual representando o ângulo pelo qual o tema pode ser analisado.

A mais comum é a lacuna normativa3 que corresponde à definição que descrevemos a pouco, ou seja, ausência ou omissão de norma jurídica abstrata positivada no sistema para solucionar um caso concreto, isto significa dizer que a lacuna normativa decorre da inexistência de previsão legal, que permite ao aplicador socorrer-se dos meios de integração encontrados em seu sistema jurídico, tais como: analogia,4 costume,5 princípios gerais, etc.

Também merecem destaque as lacunas chamadas axiológicas que são aquelas que apresentam uma solução insatisfatória para o fato, considerando a norma de rele-

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vância do sistema, ou seja, existe solução para o caso, mas o julgador entende inadequado política e eticamente e, portanto, haveria uma subordinação das normas jurídicas às questões éticas.

Vale anotar, outrossim, as chamadas lacunas ordinárias, que são aquelas inde-terminações que surgem quando o direito utiliza termos vagos. Raz,6 por sua vez, é enfático em dizer que as lacunas ordinárias são inevitáveis considerando a complexidade da linguagem. Esse entendimento vem ao encontro das premissas da teoria da linguagem, uma vez que o direito é construído pela linguagem que será sempre ambígua e vaga.7

Ainda, para compreender o tema faz-se importante colacionar os conceitos de "lacunas de conhecimento" e "lacunas de reconhecimento", apresentadas por Al-chourrón e Bulygin,8 por esta teoria as "lacunas de reconhecimento" seriam aquelas que decorrem do desconhecimento acerca da resolução de um caso, em virtude da indeterminação semântica dos conceitos (vagueza) que caracterizam um caso genérico. Para os autores, a vagueza pode até ser reduzida pelo uso de termos técnicos, mas não desaparece nunca. Por outra feita, as "lacunas de conhecimento" são aquelas que apresentam o desconhecimento do fato, o juiz desconhece na aplicação do direito ao caso concreto as informações fáti-cas. Nesse último caso, pode-se dizer que a ausência de conhecimento pode ser suprida pelas presunções legais9 e outras regras de natureza processual.

Poderíamos elencar várias espécies de lacunas e inúmeras doutrinas sobre o tema, mas para os fins que se pretende alcançar com trabalho, as indicações acima são suficientes para mensuramos sua proporção doutrinária. Entretanto, não iremos trabalhar com uma das definições apontadas, e sim, ajustar as concepções à análise de investigação dos sistemas sígnicos,10 em que Charles Morris, influenciado pela distinção de Pierce, distingue três planos: (i) sintático: relação de signos entre si, ou signo com signo; (ii) semântico: relação signo com objeto do mundo que ele representa (dicionário); (iii) pragmático: relação dos signos com o utente (usuários) da linguagem (emissor e destinatário). Ou seja, o plano sintático seria a organização dos signos; o plano semântico,11 a significação dos signos; o

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plano pragmático, a possível determinação dos signos construída pelos utentes.

As lacunas serão analisadas nesses três planos, mesmo que um deles tenha maior ênfase em face dos outros, será necessária a analise dos três planos.

4. Análise sintática, semântica epragmática das lacunas

A análise aqui proposta sempre partirá de duas acepções que se conjugam: (i) sintática e semântica, em que se analisa a compatibilidade das normas com as normas, e das normas com o sistema, isto é, se as normas deste sistema são completas ou não, e (ii) pragmática e semântica, em que o preenchimento das lacunas caberá a decisão judicial dentro do contexto em que estão inseridas.

O direito não pode ser compreendido apenas por um ângulo, por isso, as análises se completam e não se excluem. Destacando que sempre considerará o aspecto semântico, sem o qual não é possível alcançar o conteúdo das normas.

4. 1 Análise sintática e semântica

Hans Kelsen será a referência doutrinária que utilizaremos para analisar as lacunas em seu aspecto sintático/formal. Para o mestre de Viena a ausência de norma é de impossível ocorrência.12

O autor entende que as normas jurídicas são estruturadas de forma "ser/dever ser", isto é, "descrição de uma conduta e a sanção estatuída". Com base nos modais deônticos: proibido (V), permitido (P) e obrigatório (O), as normas prescrevem em seu consequente um relação jurídica mo-dalizada em um desses comandos, isto porque, todas as condutas relevantes juridicamente devem estar positivadas nor-mativamente. Se no ordenamento não há uma norma geral proibitiva, a conduta será permitida (através da permissão geral). Kelsen chama de "ordem jurídica negativa";13 deste modo, nunca haveria ausência de norma. É importante mencionar aqui, com relação ao Direito Público a tautologia se inverte "o que não está permitido está proibido", posto que a atividade pública e vinculada à lei, v.g., lançamento tributário.

Diante da premissa de que o sistema é completo e que todo e qualquer problema pode ser solucionado pelas normas válidas do sistema, Kelsen defende que diante de um caso concreto que não encontre literalmente o fato descrito em alguma norma, os órgãos aplicadores do direito poderão aplicar a solução mais justa. Sem que isso represente uma lacuna, visto que, o que não está proibido está permitido ou ainda o que não está permitido é proibido,14 fazendo assim com que todas as condutas sejam juridicamente qualificadas.

"Sendo o sistema jurídico uno, pleno e harmônico, não pode haver lacunas ou espaços em branco no direito: todo conflito, toda controvérsia encontra nele solução adequada, sempre será possível a decisão judicial, de forma que o direito é, necessariamente, aplicável em qualquer hipótese".15

Isto porque o legislador não tem condições de antecipar todas as futuras ações humanas e ao aplicador cabe a escolha: entre não aplicar uma sanção por ausência de norma geral ou ainda aplicar uma norma que servirá como meio de integração

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do direito. Não cabe à Ciência do Direito verificar as razões internas do julgador, mas sim a psicologia ou a sociologia.

Quando da aplicação da ordem jurídica vigente a mesma demonstra-se insatisfatória para...

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