Legitimação para agir

AutorAcelino Rodrigues Carvalho
Ocupação do AutorAdvogado, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional
Páginas115-137

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3.3. 1 A legitimação como condição da ação

Deve-se a Enrico Tullio Liebman, através de sua Teoria Eclética, a elaboração doutrinária acerca das condições da ação. Entendeu ele a ação não como o simples direito de provocar o exercício da jurisdição, mas o direito a um provimento jurisdicional sobre o mérito da demanda, devendo, pois, para sua configuração, serem preenchidas determinadas condições.32 "Com efeito", diz Fábio Gomes, "as chamadas condições da ação, juntamente com os conceitos de mérito e jurisdição, constituem a pedra angular, ou esteio, que sustenta a Teoria Eclética".33De fato, consoante lição do próprio Liebman,34 as condições da ação são os requisitos que têm de concorrer para a existência do direito de ação, devendo sua presença ser investigada pelo juiz, preliminarmente ao exame do mérito. Para ele, somente se pode considerar existente a ação se estiverem presentes esses requisitos, surgindo, destarte, para o juiz, o dever de se pronunciar sobre o pedido da parte, acolhendo-o ou rejeitando-o.

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Afirma, ainda, Liebman que elas, as condições da ação, podem também ser definidas como "condições de admissibilidade de julgamento do pedido, ou seja, como condições essenciais para o exercício da função jurisdicional com referência à situação concreta (concreta fattispecie) deduzida em juízo" acrescentando que: "toda decisão sobre as condições da ação é decisão sobre o processo, devendo aplicar a lex fori, seja qual for a lei que rege a relação controversa".

Em outra passagem, anota o autor da Teoria Eclética que a ação é o direito ao processo e ao exame do mérito: "a ação, como direito ao processo e ao julgamento de mérito, não garante um resultado favorável no processo: esse resultado depende da convicção que o juiz formar sobre a procedência da demanda proposta e, por isso, poderá ser favorável ao autor ou ao réu. Só com o exercício da ação se saberá se o autor tem ou não razão".35Foi tamanha a influência da doutrina de Liebman no Direito pá-trio que a mesma acabou sendo plenamente consagrada no vigente Código de Processo Civil.36 Com efeito, de acordo com o nosso direito positivo, são três as condições da ação: uma de ordem objetiva e duas de ordem subjetiva. A de ordem objetiva é a possibilidade jurídica do pedido, que visa retirar da ação seu conteúdo genérico: o conteúdo da ação deve ter como pressuposto uma situação de fato que encontre correspondente no ordenamento jurídico; as de ordem subjetiva são: a legitimação para agir e o interesse processual que, respectivamente, conferem a ação ao titular do direito material em face do sujeito passivo, na hipótese de aquele ter necessidade do provimento jurisdicional, diante de lesão ou ameaça de lesão do direito por parte deste.37

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Setores da doutrina se insurgem contra e a favor da teoria liebmaniana acerca das condições da ação. Em posição contrária, para ficar somente nestas duas, destacam-se as obras de Ovídio A. Batista da Silva e Fábio Gomes, e de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart. Com relação à crítica elaborada por estes autores, sendo certo que a dos dois primeiros se nos afigura mais contundente, convém aqui destacar os seguintes pontos: a) a natureza não jurisdicional da atividade e do provimento do juiz na pesquisa sobre a presença das condições da ação; b) a existência ou não de processo na fase preliminar alusiva à referida pesquisa; c) a natureza do direito que permite à parte provocar o órgão jurisdicional e obter, antes do julgamento do mérito, uma decisão sobre a existência ou não da ação; d) o fato de as condições da ação dizerem respeito à relação de direito material, o que faz com que a decisão de carência de ação seja, na verdade, uma decisão sobre o mérito da demanda.38Com relação ao primeiro ponto, afirma Fábio Gomes39 que um dos maiores equívocos da concepção de Liebman foi a indefinição acerca da natureza da atividade do juiz quando examina e decide preliminarmente sobre as condições da ação, posto que não a enquadrou no âmbito de nenhuma das três funções típicas do Estado: jurisdicional, administrativa, ou legislativa, afirmando, em outro local, que a Teoria Eclética "sustenta a natureza administrativa do provimento sobre as condições da ação". Todavia, consoante se denota do anunciado acima, Liebman não excluiu do âmbito jurisdicional a atividade desenvolvida pelo magistrado na pesquisa sobre a presença ou não das condições da ação e, muito menos, o provimento por ele emitido.

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Ao contrário, afirma ele que tais condições são requisitos de admissibilidade de julgamento do pedido, ressaltando que são "essenciais para o exercício da função jurisdicional com referência à situação concreta deduzida em juízo",40 ou seja, com relação ao mérito, à relação de direito substancial, que é o objeto material da relação processual, o que não retira, por evidente, o caráter jurisdicional das atividades desenvolvidas pelo julgador no iter processual que vai do ajuizamento da petição inicial até a decisão sobre a existência ou não das condições da ação no processo.

Ao afirmar que as condições da ação são condições essenciais para o exercício da função jurisdicional com relação ao mérito da demanda, Liebman está a dizer, a contrário sensu, que tais condições não são essenciais para o exercício da função jurisdicional com relação às questões de natureza meramente processual, como é o caso da perquirição sobre aquelas condições, já que o direito de ação é um direito de natureza processual. Tanto é assim que ele assevera que, como predito, "toda decisão sobre as condições da ação é decisão sobre o processo".41 Portanto, é de se entender que, para Liebman, a atividade do juiz e, em conseqüência, o provimento por ele emitido sobre a presença ou não das condições da ação tem, sim, natureza jurisdicional, como não poderia deixar de ser.

No que diz respeito ao segundo aspecto, afirma Fábio Gomes42, com espeque em Victor Fairén Guillén, que faltou a Liebman explicar se, dada a inexistência de função jurisdicional, existiria ou não processo na fase preliminar ao exame do mérito e que a conseqüência dessas indefinições é que nunca se saberia ao certo quando se teria por iniciado um processo, enquanto não demonstrada a presença das condições da ação.

A questão encontra resposta na obra do próprio Liebman. Como anotado acima, afirmou ele que toda decisão sobre as condições da ação refere-se ao processo. Logo, processo existe. Além disso, em suas palavras, como aludido acima, "o ajuizamento da petição ini-

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cial, como ato constitutivo do processo, determina também as partes: aquela que pede ao juiz o seu pronunciamento sobre determinado objeto e aquela com relação à qual tal pronunciamento lhe é pe-dido".43 Ora, se para o autor, o ajuizamento da inicial é ato constitutivo do processo, como o próprio nome induz, é evidente que restou mais que esclarecido que o mesmo considera existente processo no interregno que vai deste primeiro ato processual até a apreciação da questão atinente à presença ou não das condições da ação. Ainda, Liebman atribui à parte um conceito eminente processual, afirmando que uma coisa é ser parte e outra é ser parte legítima.

Ainda que assim não fosse, essa questão parece suficientemente esclarecida pela doutrina. Na sistematização dos pressupostos processuais proposta, dentre outros, por Arruda Alvim,44 para a existência da relação jurídica processual, portanto, do processo, deve haver: petição inicial, dirigida a um órgão investido de jurisdição, citação válida e capacidade postulatória. Também para Roque Komatsu,45 para que exista processo, enquanto relação intersubjetiva, basta haver um juiz e um pedido de prestação jurisdicional por parte de um outro sujeito.

Ademais, o próprio Código de Processo Civil, elaborado sob o influxo da Teoria Eclética, como dito, prevê a extinção do processo sem julgamento, quando inexistir qualquer das condições da ação (CPC, 267, VI), pressupondo, portanto, a existência daquele, posto que, se não existisse, não haveria como ocorrer a extinção. Isso demonstra, de forma irrefutável, o pensamento da doutrina que o informou e que, portanto, é a ele subjacente. Acrescente-se que o ato do juiz que extingue o processo sem julgamento de mérito é caracterizado como sentença (CPC, art. 162, § 1º). E Liebman inclui a sen-

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tença entre os atos de provimento, conceituando estes como sendo "as declarações de pensamento do juiz, expressas no exercício do poder jurisdicional".46Por outro lado, no que diz respeito à natureza do direito que permite o sujeito provocar um pronunciamento do órgão jurisdicional sobre as condições da ação, tornando-se parte, e fazendo nascer um processo, entendeu Liebman47 que o poder de agir em juízo assegurado a todos é uma garantia constitucional ilimitada, que decorre da instituição de Tribunais por parte do Estado. Esses Tribunais têm por tarefa distribuir justiça a quem solicitar e, em função disso, o ordenamento jurídico assegura a todos, como garantia fundamental, a possibilidade de lhes submeter suas pretensões.

Liebman adota opinião segundo a qual o poder ilimitado de agir perante os Tribunais enquadra-se na categoria dos direitos cívicos, sendo, destarte, absolutamente genérico, não se ligando a qualquer situação concreta, diferentemente do que se passa com a ação que, nos termos do art. 24 da Constituição italiana, é o direito de agir em juízo para a tutela de direitos próprios, não se prestando, portanto, à tutela de direitos alheios. O direito de ação aparece, assim, como um direito condicionado, conferida a sua titularidade àquele que se apresenta como titular do direito material. "Eis uma primeira indicação que serve para individualizar a pessoa que, caso por caso, pode efetivamente agir em juízo: é o que se chama legitimação para agir".48Com relação a esse...

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