Libertação e espiritualidade

AutorClaudio Perani
Páginas132-141
LIBERTAÇÃO E ESPIRITUALIDADE
Claudio Perani
(Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º66, mar.-abr. 1980, p. 62-72.)
Numa perspectiva de fé, não é difícil reconhecer o sopro do Espírito que atingiu a América Latina.
No Brasil e nos outros países do continente assistimos à renovação de uma '"igreja que nasce do
povo", de uma igreja que opta pelos pobres e toma-se "igreja dos pobres", entendida não como
igreja paralela, mas como centro renovador e integrador da igreja toda. E uma caminhada, ainda
iniciante, com todos os limites de um processo humano, mas já dá para perceber os frutos: recria-se
a igreja, suas estruturas, funções e mentalidade são renovadas, opera-se uma mudança, uma
conversão, uma "passagem", em sentido bíblico.
Tal renovação - necessariamente - atinge também a espiritualidade, quer dizer, o caminho concreto
do encontro com Deus, da procura e da manifestação do Espírito, da compreensão e vivência da fé.
Na tradição católica, espiritualidade é o caminho da perfeição que se resume na vivência do único
mandamento; "amar a Deus e ao próximo". Quer iluminar a relação pessoal do homem com Deus,
considerando a globalidade da existência cristã. Se existe uma única espiritualidade cristã, no
sentido de assumir os dados fundamentais do Evangelho, ao mesmo tempo as realizações concretas
da vivência evangélica podem variar historicamente. Hoje, na América Latina, surge um novo
caminho, uma nova luz se manifesta. Para muitos há como uma passagem das trevas para a luz;
antes, no depoimento de muitos - apesar de várias praticas espirituais - não se enxergava, parecia
tudo correr bem ao próprio redor. Nas palavras do profeta: ''Exclamam: Tudo vai bem! Tudo vai
bem! quando tudo vai mal" (Jer 6,14). Agora descobre-se a injustiça, o pecado, a equivocidade da
própria situação e se quer mudar.
Há várias experiências em diversos lugares, no Brasil e na América Latina toda, diferentes entre si,
mas também apresentando coincidências reveladoras. Experiências cristãs vividas antes de serem
refletidas, mas que demonstram que o Espírito do Senhor está presente em nossa história.
Sobre tais experiências queremos refletir, não para sistematizá-las numa doutrina fechada, mas
simplesmente para recolhê-las, aprofundar certos itens, com a intenção de prestar um serviço e
incentivar a procura. Também porque há dúvidas e acusações que podem dificultar a descoberta do
Senhor. Afirma-se que diminui a oração e desaparece a vida espiritual e que há uma demasiada
insistência no aspecto sócio-político; há o medo que valorizando os pobres se esqueça a Deus.
Esse breve artigo, que pretende dirigir-se prioritariamente aos agentes de pastoral, é por isso
limitado aos dados e ao enfoques relativos às experiências de padres, freiras e leigos comprometidos
com a pastoral popular, sem excluirmos lideranças populares comprometidas no trabalho.
Apesar de o povo, em sua vivência de fé, ser referência fundamental, aqui não se diz nada da
espiritualidade dos camponeses, operários, moradores de bairros populares, etc. Seria importante
para caracterizar o que podemos chamar de "espiritualidade da libertação". É o limite da nossa
perspectiva.
1. OS FATOS
1. O ponto de partida, habitualmente, é o contato com a situação concreta de opressão dos setores
populares. São padres, freiras, leigos, comunidades religiosas, grupos de jovens ou de profissionais
que mudam de lugar e se aproximam dos pobres. Pobres considerados não abstratamente, mas na
realidade de sua situação social: são a maioria da população brasileira, tão as multidões, os
camponeses, os operários, os pequenos funcionários, os biscateiros, as empregadas domésticas, os

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