Limites críticos à modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em matéria tributária

AutorDaniel Sternick
CargoPós-Graduando em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Advogado no Rio de Janeiro.
Páginas255-264

Page 255

1. Colocação do problema

Aatuação do Supremo Tribunal Federal no decorrer dos últimos anos tem chamado a atenção para o crescente uso de mecanismos de atenuação ou flexibiliza-ção dos efeitos típicos de suas decisões em controle de constitucionalidade, a exemplo da interpretação conforme a Constituição, a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto ou sem pronúncia de nulidade e, para o que aqui interessa, a modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. A par da carga política tão irremediavelmente ínsita à Jurisdição Constitucional, já denunciada no início do século XX pelo publicista alemão Carl Schmitt, a utilização freqüente dessas técnicas jurisdicionais contribui, em certa medida, ao recrudescimento do chamado "ativismo judicial", compreendido como a solução de questões jurídico-constitucio-nais com base em critérios de índole majo-ritariamente política ou levando em extrema consideração razões econômicas, políticas e sociais.

É inegável, por um lado, que a emergência dessas técnicas de decisão veio corrigir determinadas distorções que, em certos casos, as decisões de inconstitucionalidade podem produzir na realidade material a elas subjacente. Exemplo típico é o da inconstitucionalidade por omissão parcial das medidas legais que confiram vantagem a uma classe, deixando de estendê-la, contrariamente ao princípio constitucional da isonomia, a outros grupos em situação equivalente - nesses casos, a decretação, pura e simples, de nulidade da norma atri-buidora do benefício serve tão-somente para aprofundar o estado de inconstitucionalidade ali verificado.

Contudo, afastadas essas hipóteses características, a consolidação de uma ju-

Page 256

risprudência que torne confortável a utilização de instrumentos de manipulação dos efeitos das declarações de inconstituciona-lidade tem acarretado a ampliação da margem de discricionariedade do Tribunal e um maior distanciamento das razões de direito, correlato à conseqüente valorização de motivações políticas e econômicas. A modulação, objetiva ou temporal, dos efeitos das declarações de inconstitucionalida-de, se não implementada pelo STF com estrito rigor e em respeito ao arranjo constitucional estabelecido para o sistema de controle de constitucionalidade, pode ser reveladora de uma preocupante protagoni-zação das "razões de Estado" nas decisões da Jurisdição Constitucional.

O objeto do presente artigo, em particular, é articulado pela análise da modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e sua relevância no campo do Direito Tributário, bem como por uma proposta de estruturação de limitações críticas à sua instrumentalização no processo tributário à luz do princípio da proporcionalidade.

A importância da edificação de restrições à modulação temporal no processo tributário manifesta-se, em especial, a partir do julgamento do RE n. 560.626-RS, em que o STF declarou a inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei n. 8.212/1991, que estipulavam prazo de 10 (dez) anos para prescrição e decadência dos créditos previdenciários, mas restringiu, sem qualquer base lógica ou jurídica e extrapolando os limites subjetivos do Recurso Extraordinário, a restituição dos valores indevidamente recolhidos apenas àqueles contribuintes que houvessem combatido - administrativa ou judicialmente - a imposição de tributos com base no prazo decadencial ou prescricional. A decisão do STF, neste julgamento, evidenciou a exagerada medida de irrestrição da modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, que parece ter se tornado, sobretudo no âmbito do processo tributário, uma verdadeira "caixa de pandora".

2. Premissas do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro

Antes de passar ao estudo da modulação temporal, é necessário fixar o conteúdo das premissas básicas do sistema de controle de constitucionalidade previsto na Constituição Federal de 1988. Em princípio, convém esclarecer, sem investir em detalhes, que o controle de constitucionalidade assenta-se, conceitualmente, na supremacia da Constituição, princípio que confere posição de preeminência formal e material às normas constitucionais; na rigidez da Constituição, que prevê um processo de alteração do texto constitucional mais complexo e dificultoso do que o procedimento de elaboração das leis; e na força normativa da Constituição, que atribui caráter de normas jurídicas às disposições constitucionais. Todo esse conjunto teórico resulta na existência de processos de fiscalização da compatibilidade dos atos normativos infraconstitucionais em face do texto constitucional.

Em que pese ser de senso comum, deve-se destacar que o sistema de controle de constitucionalidade no direito brasileiro tem caráter híbrido, de vez que conjuga a fiscalização difusa e concreta, de influência do direito norte-americano, e a fiscalização concentrada e abstrata. Isso quer significar que todo e qualquer juízo ou tribunal brasileiro tem competência constitucional para afastar a aplicação de lei ou ato normativo sob o argumento de sua inconstitucionalidade, como antecedente lógico e necessário à solução de um litígio processual intersubjetivo. Paralelamente, as autoridades elencadas no art. 103 da CF/1988 possuem legitimidade para questionar - de modo abstrato - a legitimidade constitucional das leis ou atos normativos direta-mente perante o Supremo Tribunal Federal, por intermédio do ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade ou da argüição de descumprimento de preceito fundamental.

Page 257

Para o que mais interessa a esta investigação, é fundamental caracterizar os efeitos típicos da declaração de inconstitucio-nalidade pelo Supremo Tribunal Federal. No plano da eficácia objetiva e subjetiva, tem-se que, quando o STF exerce o controle concentrado e abstrato, a decisão que declara a inconstitucionalidade tem efeito vinculante e eficácia contra todos. A norma é, em uma palavra, expurgada do ordenamento jurídico, eis que reconhecido o vício de nulidade por violação à Constituição. Quando, por outro lado, a decisão da Suprema Corte se dá no exercício do controle difuso, por meio do julgamento de um Recurso Extraordinário, a decisão produz efeitos entre as partes, não se aplicando nas relações travadas entre as partes da demanda processual. A norma impugnada, no entanto, permanece vigente e eficaz, produzindo todos os seus efeitos regulares.

No que tange à eficácia temporal, independentemente do tipo de controle exercido, fato é que a decisão declaratória de inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc, isto é, retrospectivos, possuindo o condão de desconstituir todas as relações jurídicas erigidas sob o império da norma contrária ao texto constitucional. A norma repugnante à ordem constitucional é nula de pleno direito, considerada um natimorto cuja produção de efeitos não pode ser admitida durante qualquer lapso temporal. Para utilizar expressão mais lírica, a decisão do STF que reconhece a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo é capaz de remover o passado.

É interessante notar que não há, nem na CF/1988 nem em qualquer outra disposição da história constitucional do país, expressa estipulação no sentido da eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade. O princípio da nulidade do ato inconstitucional é, no direito brasileiro, princípio constitucional implícito, o qual decorre da influência norte-americana, da doutrina constitucional prevalente e da jurisprudência amplamente consolidada do STF.1 De todo modo, não há como negar estatura constitucional e força normativa a este princípio, que representa verdadeiro paradigma no Direito Constitucional brasileiro.

Nesse contexto, a modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade - técnica de decisão que viabiliza que o Supremo Tribunal Federal restrinja os efeitos da declaração ou determine que ela somente produza efeitos a partir do seu trânsito em julgado, ou, ainda, a partir de outro momento futuro que venha a ser fixado - passa a compor o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro na qualidade de um mecanismo de mitigação da extensão da eficácia das decisões do STF, que passa a deter uma maior margem de manipulação das implicações de suas decisões e, conseqüentemente, um maior poder discricionário, velado sob a capacidade retórico-argumentativa de índole aparentemente jurídica.

No caso do processo judicial tributário, o problema...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT