Limites do poder de revisão constitucional

AutorProf. Josaphat Marinho
CargoProfessor de Direito Constitucional da Universidade Federal da Bahia e da Universidade de Brasília (aposentado). Ex-Senador da República. Jurista
Páginas1-12

Page 1

Importância do tema

Investigar e traçar limites ao poder de reforma constitucional envolve questão tormentosa no plano superior do Estado. Se no campo do direito público fundamental os problemas se revestem, sempre, de controvérsia, tornam-se essencialmente polêmicos quando encerram definição de poder e competência. Embora as constituições estabeleçam raias de procedimento, é comum discutilas ou ignorá-las entre os próprios órgãos do Estado. O terreno circunscrito, que se aponta aos cidadãos, converte-se em espaço indelimitado ou indelimitável para os agentes titulares de autoridade. Mesmo no círculo maior dos Poderes instituídos, lavra a insubordinação, disfarçada na defesa de prerrogativas, ou do interesse supremo do povo.

Por motivos ou pretextos diversos, a Constituição, vezes sem conta, sofre abalos profundos, que vão desfigurando sua fisionomia e reduzindo o valor de seus princípios. É o processo de erosão a que se refere a doutrina, fundada na observação de múltiplos exemplos da rebeldia dos que deviam ser obedientes esclarecidos da permanência dos textos básicos.Page 2

Ânsia de poder ilimitado

A ânsia do poder insatisfeito atinge as constituições até no que elas têm de mais respeitável: a durabilidade ou permanência de suas normas. A vontade de mudar desconhece os contornos institucionais do poder de reforma constitucional. Não importa que na histórica decisão do caso Marbury v. Madison, definidora, em 1803, do princípio de declaração da inconstitucionalidade de leis e atos, a Corte Suprema dos Estados Unidos houvesse proclamado, pelo voto de Marshall, a superioridade do poder constituinte. "O exercício desse direito original - declarou - é um insigne esforço: não pode, nem deve repetir-se freqüentemente. Os princípios que destarte uma vez se estabeleceram, consideram-se, portanto, fundamentais. E, como a autoridade, de que eles dimanam, é suprema, e raro se exerce, esses princípios têm destino permanente"1. Apesar da sentença formadora de doutrina, na prática política se pretende transformar em procedimento rotineiro e indemarcável o de reforma das constituições.

Não se há de generalizar a acusação de incontinência. Exemplos de contenção podem ser dados. O mais expressivvo é o dos Estados Unidos, que mantêm sua Constituição de 1787 com apenas 27 emendas, e sem mudar a essência do regime. Até em países de textos constitucionais de origem e perfil discutíveis, procede-se cautelosamente. Já observamos, noutro instante, que, embora o presidente da França tenha a faculdade de iniciativa da revisão, por proposta do Primeiro Ministro (art. 89), o Presidente François Mitterrand designou um Conselho Consultivo, de alta representatividade, que sugerisse as modificações aconselháveis2. O pudor presidencial reprimiu a divergência do socialista, não obstante a Constituição de 1958 ser considerada, geralmente, delineadora da vontade do General De Gaulle. Essa a orientação que deveria prevalecer, e não prevalece.

Estabilidade, reforma e interpretação

A estabilidade institucional deve superpor-se a razões filosóficas e políticas, de sorte que a Constituição somente seja alterada por superiores motivos de ordem social e pública. Não cabe julgá-la intocável, pois há de ser instrumento adequado a regular continuamente a vida do Estado e da sociedade. Para tanto, pressupõem-se mudanças naturais no texto, equivalentes às das transformações gerais. Sem dúvida, como se inscreveu no art. 30 da Constituição francesa de 1793, "um povo tem sempre o direito de rever, de reformar e de mudar sua Constituição. Uma geração não tem o direito de sujeitar a suas leis as gerações futuras". Mas esse princípio não há de ser entendido, hoje, segundo o pensamento daquela época, de exacerbação do individualismo.Page 3

A liberdade de rever a Constituição é condicionada ao interesse coletivo e do Estado. A satisfação desse interesse é que imprime dimensão real a todas as leis, e não o atendimento das reivindicações de partidos, facções e maiorias ocasionais. Onde se confundem aspirações de grupos com direitos da coletividade, as instituições se desfiguram por objetivos parciais. Equivale a dizer que as mutações constitucionais necessárias, indicativas da libertação das gerações entre si, visam ao bem-estar do todo social no tempo preciso, e não ao benefício de segmentos menores e isolados da sociedade. Por isso são legítimas.

Mas, para corrigir deficiências e omissões dos textos constitucionais que não lhes comprometem a essência, a solução está na interpretação inteligente deles, que varia do esclarecimento lógico à construção do espírito do sistema. Assim tem sido a evolução do regime constitucional americano, para garantir a preponderância da União e o equilíbrio federativo, para assegurar os direitos civis no processo de integração da população de raças diferentes, ou para proteger a plena manifestação de pensamento, especialmente a da imprensa. No Brasil, na vigência da Carta de 1891, a extensão do habeas corpus ao resguardo de outros direitos, que não o de locomoção, por falta de remédios específicos, representou sinal relevante do que pode alcançar a interpretação judicial, sem modificação visível dos textos normativos.

Tanto maior será a importância da interpretação quanto dela se fizer, como realça Segundo Linares Quintana em livro deste ano, "um ato de compreensão"3, vale dizer, um meio de integração de preceitos que formam um sistema regulador da existência de um povo.

Por exegese, portanto, é possível suprir falhas do instrumento constitucional, sem necessidade de alterar-lhe a expressão formal. A inteligência completa o texto, mantendo-o na sua literalidade, para lhe não enfraquecer o prestígio de documento permanente e supremo. Trata-se de forma superior de conservar a autoridade da Constituição, dela extraindo postulados compatíveis com sua sistematização. Em 1921, vai por mais de 75 anos, portanto, Esmein, professor da Faculdade de Direito de Paris e de outras instituições, revelando-se liberal, já ponderava que as condições de revisão, subordinadas, em princípio, ao processo estabelecido, "fatalmente se desenvolvem também de outra maneira: pela interpretação jurídica, que encontra sua expressão autorizada nos precedentes"4.

Quando se quer robustecer a supremacia da Constituição, assim se procede, idoneamente. Irmanam-se letra e espírito, unindo-os no juízo lógico e criador, que conserva o texto adaptando-o à realidade, e destarte o atualiza para servir bem seu destinatário, que é o povo, ou o Estado.

Quando não se intenta prestigiar a Constituição, nem a inteligência que a explica, transforma-se todo pretexto em razão de reforma, ou revisão.Page 4

Já na vigência da Constituição de 1946, o senador e professor Aloysio de Carvalho Filho denunciava e repelia a exaltação reformadora, que não equivale a mudanças oportunas. "Cumprir uma Constituição nova, como a nossa,ponderava - é, antes de executá-la, defendê-la, ou honestamente executá-la, por melhor defendê-la. Defendê-la, contra a ação corrosiva dos inimigos, contra as ofensas, de qualquer natureza ou profundidade, contra o revisionismo tendencioso, contra as modificações freqüentes ou despropositadas"5

Processo de reforma

As constituições escritas, comumente, incorporam a seu sistema forma especial para alterá-las, mediante emenda ou revisão. A previsão desse processo definido de reforma é que lhes transmite o caráter de cartas rígidas. Não são alteráveis, validamente, senão obedecido o procedimento singular nelas estabelecido. O teor, ou seja, a severidade ou a flexibilidade de tal procedimento varia com as peculiaridades políticas e culturais de cada povo. Em que...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT