Sobre literatura, crianças, adultos e outros bichos

AutorJair Tadeu Fonseca
Páginas57-61
SOBRE LITERATURA, CRIANÇAS, ADULTOS E OUTROS BICHOS
Jair Tadeu da Fonseca
A criança, enquanto outro do adulto, é produção recente. Entre outras coisas, a
literatura ajudou na produção do infante, e já que falo em produção, vou empregar dois
outros termos de economia. Digamos que de adulto subdesenvolvido a criança passou a ser
considerada como ser humano em desenvolvimento. Ou seja: a coisa mudou, mas não
muito. A infância seria fase de incompletude, de imperfeição, de inacabamento, cujo telos é
a vida adulta. E é desta que surge a produção artística, cultural e social que produz a
criança, criada (mesmo etimologicamente a criança é criação) à nossa imagem e
semelhança1 – para servir à imagem e semelhança de nós, adultos – como se fôssemos a
origem e o destino da criança – alguém que não teria a menor chance no mundo – um
mundo de adultos – sem (justamente quem?) os adultos.
Daí a superioridade, a autoridade autoconferida e a bonomia complacente com que
tantas vezes vestimos o autoritarismo pelo qual produzimos a infância, ao produzirmos
discursos e práticas sobre ela e para ela. Sublinho a palavra sobre e cito Bruno Bettelheim,
que escreve acerca de “Chapeuzinho Vermelho”: “Nos comentários e preceitos morais que
Perrault acrescentava às estórias, ele falava como se estivesse piscando para os adultos por
cima das crianças.” Claro que o próprio Bettelheim, ao tratar dos contos de fadas, por sua
vez, lança aos adultos suas piscadelas
Dessa maneira, um discurso sobre a infância é um discurso de superioridade, que
vai sobre a cabeça dos “baixinhos” (termo cuja utilização é de uma grande baixeza!). Ele
mal tenta disfarçar a superioridade e mesmo o menosprezo com o diminutivo, empregado
com suposto intuito carinhoso, mas que só faz diminuir, no sentido de humilhar e rebaixar a
criança. No caso da Xuxa, por sobre as cabeças dos baixinhos as piscadas se dirigem aos
adultos... anunciantes. Porque aí se trata de uma educação das crianças para o consumo, em
que o país das mercadorias se metamorfoseia no país da maravilhas da sociedade do
espetáculo, ou seja, da sociedade capitalista, de que trata Guy Debord.
1 BETTELHEIM. A psicanálise dos contos de fadas, p.205.
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