Lugar de crianças e adolescentes é na escola!

AutorTania Coelho dos Santos
Páginas222-232

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Esta é uma ocasião muito especial, pois é raro que psicanalistas sejam convidados para conversar com promotores, procuradores, juízes e advogados sobre como educar as crianças. O que permitir e o que proibir? Na questão do trabalho infantil, não é diferente. O que devemos incentivar e promover e o que devemos recusar e proibir? Qual deve ser a posição do Estado brasileiro nessa questão?

Começo denunciando a dupla moral da administração pública brasileira. É proibido construir nas encostas da cidade do Rio de Janeiro, mas prolifera — quase sem nenhum controle — a ocupação favelada. Pesadas multas incidem sobre as construções irregulares de classe média. Mas não se pode remover as ocupações ilegais. Onde não é permitido construir legalmente, não se pode reprimir a construção ilegal. Eis aí uma boa metáfora do tratamento desigual — pelo poder público — dos cidadãos que vivem no asfalto e dos que moram nas comunidades.

No campo da educação impera a leniência do Estado brasileiro. Soubemos pelos jornais que 800.000 adolescentes, entre 15 e 17 anos estão fora da escola. O Brasil caiu para 88ª posição entre outros países no ranking do índice de escolaridade. De acordo com minha experiência como orientadora de uma tese de doutorado sobre os jovens no DEGASE1, posso afirmar que os rapazes deixam a escola para trabalhar ou porque cometeram um ato infrator. As jovens deixam a escola porque engravidam precocemente. Embora a educação pública e gratuita seja um dever constitucional do Estado, não é acompanhado da contrapartida que é a obrigação — por parte dos adolescentes — de permanecerem na escola até o final do ensino fundamental e médio. Aceita-se, tacitamente, que há cidadãos de duas categorias. Há jovens “privilegiados” que são obrigados a frequentar a escola e seus pais devem a pagar caro por esse “privilégio”. E há jovens “desfavorecidos” que têm o direito de abandonar a escola pública e gratuita para entrar prematuramente no mercado de trabalho ou no crime. A sociedade costuma desculpá-los acreditando que as más condições socioeconômicas os impelem a isso. Esquecem-se as “nossas consciências culpadas pela desigualdade social” que, também, os jovens dos extratos médios ou altos abandonariam a escola se pudessem. São impedidos pelos pais que sonham em lhes preparar para o futuro.

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Os contribuintes se revoltam contra a desproporção entre os elevados impostos e a péssima contrapartida em serviços públicos. O poder público esmera-se em dilapidar esta elevada carga tributária sem alcançar o objetivo de promover saúde e educação pública e gratuita. Em nosso país, escola e saúde pública gratuita são consideradas um direito somente “daqueles que não podem pagar”. A palavra “público”, em nosso vocabulário, quer dizer o quê? Ensaio algumas respostas. É público aquilo que é para “o pobre”. Também é público o dinheiro de nossos impostos que os políticos acreditam que têm o direito de apropriar-se em seu próprio benefício. É de todos, então não é de ninguém! É de quem é mais esperto, de quem corre e pega primeiro. É uma prerrogativa dos cidadãos que se consideram pobres e despossuídos. Dos que pensam que lhes falta o necessário para viver melhor, logo, têm o direito de tomar para si o que é de todos. Os “sem recursos” brasileiros, aqueles que se consideram pobres, são também os que exercem o direito de ter o maior número de filhos. Como se ter filhos não lhes custasse dinheiro algum! É público o direito de gerar. Apropria-se dele quem tem coragem de conceber, parir e alienar ao poder público a obrigação de criar! Essa conta, a do preço de procriar — que nos extratos sociais ditos médios e altos é problema do bolso do cidadão — nos extratos sociais, ditos menos favorecidos, é do Estado.

A dupla moral do Estado atribui aos cidadãos dos extratos sociais — ditos favorecidos — direitos e deveres. Aos demais, cabe a proteção dos políticos que vivem desse imenso curral eleitoral. Alguns magistrados, promotores e defensores públicos também defendem — graças a um emaranhado de sentenças judiciais confusas e contraditórias — o direito de viver “fora da lei”. Acreditam que podem corrigir a desigualdade social, fazendo justiça distributiva com as próprias mãos. É a justiça Robin Hood.

Esta dupla moral — numa cidade partida como a do Rio de Janeiro — tem origem na psicologia do brasileiro. Dizem que nós brasileiros — e os cariocas, em particular — somos avessos às normas. Esses ditos disfarçam a verdadeira natureza do problema. É preciso desmascarar essa ingênua psicologia. Ela contribui para consolidar a desigualdade social e não para combatê-la.

1. O jeitinho brasileiro

Roberto DaMatta2 imortalizou essa expressão que se refere à tolerância do brasileiro com a quebra de normas e com o desrespeito às leis. Uma outra expressão — colhida e consagrada pelo conhecido antropólogo — refere-se à persistência, na cultura brasileira, de hábitos hierárquicos. “Você sabe com quem está falando?”3 é uma espécie de senha que abre o acesso de alguns indivíduos a um tratamento diferenciado — ao arrepio da lei — em consequência do lugar privilegiado que ocupa na pirâmide social. Essas expressões mostram que a universalização dos direitos e deveres esbarra — em terras brasileiras — nos hábitos colonialistas e escravagistas que configuram o aspecto mais essencial da

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sociedade brasileira. Somos modernos e igualitários em nossa configuração jurídica. Somos arcaicos e hierárquicos em nossa realidade social de fato.

O que Roberto DaMatta não examinou mais de perto é o fato de que essa desigualdade implica que o Estado trata diferentemente os cidadãos. Há direitos e deveres distintos, dependendo do extrato social a que o indivíduo pertence. É equivocado acreditar que todos os direitos estão do lado das camadas mais favorecidas e todas as obrigações no andar de baixo da pirâmide social. A distribuição de direitos e deveres é profundamente desigual, mas, não é verdade que privilegie uma camada de renda em detrimento da outra. Por que faço essa afirmação? Recentemente, Alberto Carlos de Almeida4, cientista político e professor da UFF, produziu uma revisão dessas teses clássicas sobre a subjetividade brasileira. Em sua pesquisa de campo, ele demonstrou a relação entre a persistência dessas atitudes arcaicas e hierárquicas e o nível de escolaridade.

Essa pesquisa trouxe elementos estatísticos em apoio à tese de que a atitude do brasileiro médio, de menor escolaridade, é arcaica. A prova disso é que a percepção dominante nesse grupo acerca das relações sociais teria permanecido hierárquica, reforçando a desigualdade social. A crença na desigualdade social leva esse grupo de brasileiros a ser tolerante com uma série de violações dos princípios igualitários em que se pauta nossa constituição. Os modos de burlar as regras do pacto social igualitário variam desde o favorecimento aos amigos, passando pelo recurso ao famoso “jeitinho brasileiro” chegando até à transgressão da lei pelo suborno e a corrupção.

A grande virtude da pesquisa de Almeida foi buscar as relações entre a persistência de atitudes arcaicas e o grau de escolaridade dos indivíduos. Seu trabalho demonstra amplamente que, à medida que o indivíduo evolui na escala do grau de escolaridade, ele abandona, progressivamente, uma visão de mundo baseada na desigualdade. O indivíduo mais escolarizado tende a adotar uma visão de mundo de acordo com os princípios constitucionais. Ele passa a acreditar que todos nascem livres e iguais.

Seu trabalho demonstra bem que o indivíduo, quanto menos escolarizado é, mais acredita na desigualdade natural entre os indivíduos e mais ele reivindica o direito de ser protegido. Esse indivíduo tende a desenvolver hábitos de dependência em relação aos mais poderosos, mais ricos ou mais cultos. O autor concluiu, baseado no fato de que o grau de escolaridade do brasileiro é baixo, que a grande maioria da nossa população pensa de modo arcaico e conserva uma visão do mundo social pautada na...

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