'MÃES MÁS': UM OLHAR SOBRE O ABANDONO

AutorAuricéa Xavier de Souza Lima
Páginas29-44
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Niterói, v.11, n.2, p. 29-44, 1. sem. 2011
“MÃES MÁS”: UM OLHAR SOBRE O ABANDONO
Auricéa Xavier de Souza Lima
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
E-mail: auricealima@yahoo.com.br
A mulher abandona, a criança sofre. A mãe se ausenta, um vigia do
bloco vira protagonista. A mãe não quer o lho, o homem assume a
guarda. A mulher toma outra decisão que não a maternidade, a Justiça
a joga na cadeia. A mídia, em vez de tratar essas mulheres como
interlocutoras legítimas, tem ajudado a transformá-las em mais um
“outro” monstruoso. E, assim, o silêncio permanece duplo: primeiro,
ela passa sozinha por todo o processo e, depois, quando o caso vem a
público, novamente sua voz e sofrimento são calados. (Fleisher, 2008).
Resumo: Este artigo, através do exame de material jornalístico publicado
entre o início de janeiro de 2008 e o final de dezembro de 2010, tem como
objetivo analisar a dinâmica que organiza o abandono de bebês no Brasil
contemporâneo. Ao mesmo tempo, busca examinar o modo como a mídia
reporta esse fenômeno, sublinhando sua perspectiva moralista e discrimi-
natória. Atenção particular é dada ao fato de que as mulheres-mães são fre-
quentemente consideradas as únicas responsáveis enquanto os homens-
-pais raramente são acusados ou mesmo mencionados.
Palavras-chave: abandono de bebês; mídia; estigmatização; maternidade.
Abstract: In this article we examine journalistic material published between
early January, 2008 and late December 2010. It aims at examining the dyna-
mics that organize the so-called abandonment of babies in contemporary
Brazil. It also aims at examine the way the media report this phenomena
highlighting its moralizing and discriminatory undertones. Particular at-
tention is given to the fact that women-mothers are usually considered the
only responsible agent for the abandonment while the men-fathers are ra-
rely accused or even mentioned.
Key words: babies’ abandonment; media; stigmatization; motherhood.
30 Niterói, v.11, n.2, p. 29-44, 1. sem. 2011
Introdução
Ao longo da história das famílias, das mulheres e da infância a dico-
tomia público x privado sempre se fez presente conformando espaços he-
terogêneos que, em tese, não deveriam se comunicar e, mais ainda, deve-
riam estar em oposição um ao outro. Se a saída das mulheres para o espaço
público foi um grande avanço para que elas também pudessem ocupar
tal espaço, menor êxito elas obtiveram no sentido de diminuir a distância
entre esses dois mundos. O cuidado com o lar, a família e os filhos conti-
nuou sendo, culturalmente, uma tarefa de responsabilidade feminina a ser
desenvolvida na esfera privada do lar.
A maternidade, além de continuar sendo sacralizada, também per-
siste sendo indissociável da figura feminina em nossa sociedade. Portan-
to, aquela que escolhe a “deserção da maternidade”, a “não maternagem”,
torna-se alvo do julgamento e do preconceito de uma sociedade ainda
sobre forte influência dos mitos e conceitos que cercam esse tema e o
universo feminino.1
Ainda que as mulheres tenham, ao longo da história da luta femini-
na conseguido “adentrar” o espaço público, tem sido difícil que o “público”
perceba e interfira no “privado. A supervalorização da vida privada e do
individualismo nas sociedades capitalistas conserva a dicotomia referida
e impede, muitas vezes, que problemas sociais sejam vistos como tais e
passem a fazer parte da agenda pública. Essa dicotomia, relativamente ao
tema desse artigo, nos coloca de frente com algumas indagações: a mater-
nidade é uma questão que concerne apenas à família e às redes sociais pró-
ximas de apoio, ou seja, ao espaço privado? A infância também o é? Logo, o
abandono de um bebê é um problema estritamente de âmbito privado? A
Constituição brasileira, em seu art. 227 do capítulo VII, nos responde esses
questionamentos: o cuidado com a infância é dever do Estado, da família e
da sociedade, portanto, todos esses atores são responsáveis pelo cuidado
com as crianças, estejam elas dentro ou fora de seus lares.
Em meio às notícias veiculadas pela mídia, nos deparamos com vários
casos de bebês recém-nascidos abandonados em ruas, latas de lixo, terre-
nos baldios e rios. Diante dessas notícias, somos tomados de sentimentos
de indignação, revolta e desprezo aos quais se associam várias indagações:
como pode uma mãe abandonar seu próprio filho e em condições tão pre-
cárias e perversas? Onde está o “instinto materno” que possivelmente leva-
1 Até mesmo a infertilidade é fator de discriminação capaz de transformar muitas mulheres em párias sociais.

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