Mais que uma Razão Econômica: apontamentos sobre a constituição do mercado de títulos da dívida pública brasileira

AutorAna Carolina Bichoffe
CargoDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGPol) da Universidade Federal de São Carlos
Páginas218-253
http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15n33p218
218 218 – 253
Mais que uma razão econômica:
Apontamentos sobre a constituição
do mercado de títulos da dívida
pública brasileira
Ana Carolina Bichoffe1
Resumo
O artigo apresenta algumas dimensões do percurso de conformação do mercado de títulos da
dívida pública brasileira através de uma leitura da manifestação do risco de crédito soberano. Para
isso são analisados dois momentos políticos considerados marcadores relevantes da constituição
desta morfologia econômica e f‌inanceira. As disputas e tensões que estes dois momentos reve-
lam, se mostram enquadramentos interessantes para entender a constituição inicial da estrutura
de mercado brasileiro e o aparato cultural que lhe baliza. Recorre-se, portanto, à sociologia crítica,
no qual a trama f‌inanceira é posta em perspectiva pelo viés histórico e cultural. Espera-se com
este artigo contribuir para um referencial analítico que rompa com a forte inclinação economicista
que domina as explicações e problematizações sobre o tema.
Palavras-chave: Mercados. Títulos da dívida pública. Agências de Classif‌icação de Risco.
Governamentalidade.
1 Introdução
A primeira metade dos anos 2000, até a emergência da Great Finacial
Crisis (GFC) (FRIEDEN, 2016) iniciada em 2007, revela uma condição inte-
ressante no campo das nanças governamentais. Um número considerável de
países que até então mantinham como diretrizes as prerrogativas econômicas
e scais de austeridade sugeridas pelo consenso de Washington desviam suas
políticas econômicas domésticas para um novo modo de produzir e orquestrar
as nanças soberanas.
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGPol) da Universidade Federal de São Car-
los. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças (NESEFI) e Núcleo de Estudos
e Pesquisa sobre a sociedade, poder, organização e mercado (NESPOM). Atualmente pesquisadora visitante no
Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, Berkeley. E-mail: acbichoffe@berkeley.edu.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 15 - Nº 33 - Maio./Ago. de 2016
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Esse fenômeno singular despertou o interesse de pesquisadores interna-
cionais. Fourcade (2013), por exemplo, apresenta um conjunto de dados e
indícios que comprovam a refração de um conjunto signicativo de países ao
transnational paradigm’ (BABB, 2013 citado pela autora) que imperou sobre
as políticas econômicas nas décadas anteriores. De acordo com pesquisadora,
a balança de empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) oferece
pistas instigantes sobre o fenômeno. Nos anos 2000, a clientela da instituição,
ou seja, países tomadores de empréstimos, sempre crescente desde a criação do
Fundo em 1944, parece evaporar.
A queda signicativa na balança do FMI, especialmente entre os anos
2006-20072, é explicada pela mudança de postura na estratégia de desenvol-
vimento econômico de muitos países que até então recorriam ao crédito ofe-
recido pelo Fundo3. Ao tomar os BRICs (Brasil-Russia-Índia-China) como
objeto de estudo Fourcade expõe e analisa não apenas o reposicionamento
material desse grupo, mas também a dimensão simbólica e moral frente ao
espaço econômico e nanceiro internacional. Recorrendo às mídias nan-
ceiras e círculos nanceiros internacionais importantes, Fourcade traça uma
análise do jogo linguístico de evocação de acrônimos como estratégias de di-
ferenciação e legitimação, mas também de estigmatização, tal como os PIGS
(Portugal-Itália-Grécia-Espanha,‘Spain’ na língua inglesa)4. Deste modo, a
autora demostra como os BRICs se constituíram como um grupo desaante,
capaz de, naquele momento, se performar como alternativa de novas opor-
tunidades de investimentos, frente aos tradicionais países do sul da Europa5.
Uma das conclusões da autora é de que o jogo de sentido perpetrado
por esses Estados desaantes na verdade não forjou uma ruptura total com o
receituário nanceiro ortodoxo, mas abriu uma janela de oportunidade para
que esse bloco de países passasse a moldar e gerir suas economias com mais
2 Fourcade cita uma queda da circulação total de crédito da instituição. Segundo dados recolhidos do próprio
site do Fundo em 2003, a soma circulante era de 71,912,955,980 bilhões de dólares. Em dezembro de 2007 o
valor passa para 9,833,092,338 bilhões de dólares. A redução drástica do orçamento forçou o Fundo a rever e
realizar profundos cortes de despesas; até mesmo vender bens para manutenção de seus custos de operação.
Engolindo do seu próprio remédio, de acordo com a autora.
3 Ou que fora mantido fora deste circuito de capital, como foi o caso da China.
4 A autora também sugere o uso de PIIGS, onde se inclui a Irlanda.
5 De acordo com Fourcade aparece também em suas pesquisas o acrônimo STUPID, referência à Espanha
(Spain-Turquia- Reino Unido (UK)-Portugal-Itália-Dubai).
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Ana Carolina Bichoffe
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autonomia. A questão de fundo presente no trabalho de Fourcade e seus inter-
locutores, mas não explorada de forma objetiva por eles e por outros quadros
da Sociologia Econômica e das Finanças, diz respeito ao fato de esses Estados
terem constituído sosticados mercados de títulos públicos, descentralizando
a dependência de crédito de bancos e instituições multilaterais.
Assim, a proposta deste artigo reside em tentar dar o primeiro passo para
o preenchimento de uma das lacunas aberta por trabalhos anteriores. Com
base em uma profunda pesquisa documental em fontes primárias e secundá-
rias, o texto traz para reexão enquadramentos de momentos tensionantes
que ajudam a compreender as disputas em torno da consolidação do mercado
de títulos da dívida pública brasileira6.
O eixo principal que guia o entendimento das dinâmicas desse novo mer-
cado está nas manifestações de risco de crédito soberano, operacionalizadas
por meio das avaliações e ratings de risco de crédito. Ainda que a natureza
de sua importância possa parecer invisível e distante à maioria da sociedade,
trata-se de um arsenal heurístico com profundas implicações simbólicas e ma-
teriais. O entendimento básico que pauta a pesquisa leva em conta primeira-
mente que as manifestações de risco e as avaliações decorrentes delas são obje-
tos relacionais, constituídos e desfeitos a partir de disputas culturais e políticas
(GRUN, 2014, 2016; FOURCADE, HEALY, 2013b). Logo, compreendidos
como histórico e culturalmente situados.
A esse respeito, uma leitura Foucaultiana do problema colocaria que não
se trata tanto de vasculhar qual o tipo de conhecimento que pode ser consti-
tuído a partir da manifestação de risco de crédito soberano, mas sim, qual o
tipo de poder que se exerce sobre ele, e do qual há uma razão para continuar
a exercer (FOUCAULT, 2006, 2008; CASTEL, 1987). Assim, a questão de
fundo que se pode colocar é: como esse fenômeno constitui, para a sociedade,
Estado e mercados econômicos e nanceiros, um desao.
6 Trata-se de um fenômeno analiticamente interessante: em vez de uma redução do endividamento – ou para
usar o termo nativo ‘desalavancagem’ – após a crise, as principais economias mundiais elevaram suas obri-
gações em relação ao seu PIB. Dessa forma, a dívida global cresceu 57 trilhões de dólares americanos entre
2007 e 2014, passando de um total de 142 trilhões para 199 trilhões de dólares, valor que corresponde a 17%
do Produto Interno Bruto (PIB) mundial (MCKINSEY; COMPANY, 2015). Desses, 25 trilhões (2,14% do PIB
mundial) correspondem a títulos da dívida pública de Estados Soberanos.

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