O Mandado de Injunção e o Direito de Greve no Serviço Público: O Papel do Princípio da Supremacia do Interesse Público na Mudança da Jurisprudência do STF

AutorRodrigo Mendes de Sá
CargoBacharel em Relações Internacionais e Graduando em Direito pela Universidade de Brasília.
Considerações iniciais

O direito de greve dos servidores públicos civis foi estabelecido no Brasil pela primeira vez na Constituição de 1988. Antes disso, os textos constitucionais não faziam menção ou o vedavam expressamente, como foi o caso da Constituição de 1967/69. Por isso, trata-se de uma inovação significativa. Está previsto no inciso VII do art. 37 da Constituição, que diz:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica.

Pela redação do dispositivo, percebe-se que, para ser exercido em sua plenitude, o direito de greve no setor público necessita de uma regulamentação por meio de lei específica. Em tese, isso é o que deveria ter ocorrido. Todavia, as coisas não se passaram dessa maneira. Isso porque até hoje a lei específica a que alude o texto da Constituição não foi editada pelo legislador. E, tendo em vista que se trata de uma norma de eficácia limitada, de acordo com a classificação de José Afonso da Silva em relação à eficácia e à aplicabilidade das normas constitucionais, os servidores, em princípio, não poderiam fazer greve.1

Nesse contexto, o remédio adequado para corrigir a omissão inconstitucional em questão seria o mandado de injunção, outra novidade da atual Carta Magna e que está previsto no inciso LXXI do art. 5º2, cuja redação é a seguinte:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.

Em linhas gerais, o mandado de injunção é o tipo de ação cabível quando se configurarem dois requisitos básicos. Um deles é a ausência de norma regulamentadora. E o outro é a impossibilidade de exercício dos direitos ou prerrogativas previstos no texto constitucional em virtude da falta dessa norma. Caso um desses requisitos não esteja presente, não estará configurada hipótese de mandado de injunção. Ou seja, se já existe a lei que regulamenta o direito previsto na Constituição ou se esse mesmo direito já está previsto em norma auto-aplicável, não caberá a utilização do writ injuncional.

No entanto, em vários casos, o mandado de injunção se mostrou ineficaz para corrigir a omissão legislativa na regulamentação das normas que permitiriam o exercício desses direitos e prerrogativas. Como o instituto não possui legislação específica e está previsto apenas na Constituição (em relação aos procedimentos, o art. 24, parágrafo único, da Lei 8.038/90 dispõe que se aplicam, no que couber, as normas do mandado de segurança enquanto não for editada lei específica), foi necessário que o Judiciário estabelecesse seus parâmetros de aplicação. Essa tarefa coube, em grande parte, ao Supremo Tribunal Federal (STF), que assumiu uma posição inicial bastante conservadora. No julgamento do Mandado de Injunção (MI) 1073, leading case da matéria, levantou-se uma questão de ordem com relação à auto-aplicabilidade do instituto a partir do que diz o § 1º do art. 5º da Constituição:

Art. 5º (...):

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Além de decidir pela auto-aplicabilidade do mandado de injunção, a Corte julgou tratar-se de uma ação mandamental, em que ela declararia a mora legislativa e daria ciência ao órgão competente, determinando que tomasse as providências necessárias para solucionar a omissão inconstitucional. Não cabia ao Tribunal fixar a norma para o caso concreto, pois isso representaria uma usurpação da função de legislar, que cabia a outro Poder. Tal posicionamento mostrou-se inócuo, pois o Poder Judiciário não possui meios concretos de sanção sobre o Legislativo no sentido de fazê-lo sair do estado de omissão. Assim, o legislador, em muitos casos, não saiu da inércia legislativa.

Por isso, o Supremo não demorou a alterar seu entendimento inicial. Em alguns casos, passou a fixar prazo para que fosse suprida a lacuna legislativa sob pena de ocorrer alguma conseqüência prática. No MI 2834, por exemplo, a persistência da mora após o período estipulado (45 dias para a edição da norma, acrescidos mais 15 dias para a sanção presidencial) garantiria ao prejudicado a satisfação dos direitos negligenciados. E o MI 2325 determinou que, decorridos seis meses de omissão do Congresso Nacional em editar a lei regulamentadora do art. 195, § 7º, da Constituição, o impetrante passaria a gozar a imunidade requerida. Estes são exemplos de que o STF, ao modificar sua posição, passou a admitir, ainda que indiretamente, o exercício de uma função regulatória do caso concreto, buscando dar a essa ação eficácia mandamental de fato. No entanto, o Tribunal nunca admitiu fixar explicitamente a norma regulamentadora, assumindo típica função legislativa.

Por outro lado, no caso do direito de greve no setor público, o STF nem sequer evoluiu de sua posição inicial no MI 107-QO. Com isso, apenas se declarava a omissão inconstitucional, dando ciência ao Legislativo e determinando que este tomasse as providências cabíveis. O resultado foi a persistência da omissão. Além disso, as greves, apesar da falta de regulamentação, foram realizadas sem qualquer tipo de controle, sendo muitas delas de caráter nitidamente abusivo e prejudicial à sociedade.

Diante desse quadro, em 07/06/2006, durante a sessão de julgamento dos MIs 6706 e 7127, os Ministros Eros Grau e Gilmar Mendes apresentaram proposta no sentido de que o STF regulamentasse provisoriamente o direito de greve no setor público a partir do disposto na Lei 7.783/89, que trata da greve dos trabalhadores em geral, com as devidas adaptações. Tal proposta foi consagrada no dia 25/10/2007, com a conclusão do julgamento dessas ações e também do MI 7088, restando vencidos parcialmente os Ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, que entendiam que a regulamentação deveria se limitar ao caso concreto.

Nessa mudança de posicionamento, alguns fatores tiveram maior preponderância do que outros. Muito se discutiu, por exemplo, se não haveria uma violação ao princípio da separação de poderes caso o Judiciário fixasse uma norma para solucionar o caso concreto. Tal preocupação, ainda que de forma mitigada em comparação com a visão anterior da Corte, foi enfatizada pelos Ministros vencidos e também pelos que apoiaram a tese vencedora. Outro princípio relevante lembrado durante o julgamento foi o da supremacia da Constituição no ordenamento jurídico e a necessidade de se respeitar a sua autoridade.

Mas, no caso deste trabalho, a ênfase recairá sobre o princípio da supremacia do interesse público e o seu papel sobre a mudança de posicionamento do Tribunal. Ou seja, o objetivo é discutir até que ponto esse princípio foi importante para que o Supremo Tribunal Federal adotasse um novo posicionamento no que se refere à aplicação do mandado de injunção, que, com o precedente aberto, pode também influenciar a decisão de outros casos.

Assim, o ponto inicial consistirá numa exposição geral sobre o direito de greve do servidor público no Brasil e em outros países, além dos fatos que levaram a uma mudança de posição do Judiciário. Com base nesse panorama, serão abordados, em termos mais amplos, os riscos dessa situação específica para o princípio da supremacia da Constituição. Em seguida, será discutido o princípio da separação de poderes, buscando verificar se essas decisões recentes representam de fato uma ofensa a tal princípio. E, por fim, o debate recairá sobre o princípio da supremacia do interesse público a partir da perspectiva não só do direito de greve no setor público em si, mas sobretudo em relação aos prejuízos causados à sociedade pelos diversos movimentos paredistas de servidores públicos que têm sido realizados praticamente à margem da lei, constituindo um nítido choque de interesses.

O direito de greve do servidor público civil no Brasil e no direito comparado

Uma das inovações mais significativas trazidas pela Constituição de 1988 consistiu na introdução do direito de greve dos servidores públicos civis, previsto no art. 37, VII. É a primeira vez que o texto constitucional prevê expressamente esse tipo de direito. Antes disso, não havia qualquer menção a respeito. Celso Ribeiro Bastos aponta, por exemplo, o caso da Constituição de 1967/69, que vedava expressamente esse direito, como parâmetro de comparação com a atual Carta Magna. Diz ele:

A Constituição de 67/69 proibia expressamente a greve nos serviços públicos e atividades essenciais definidas em lei. A atual introduziu, sem dúvida, uma sensível alteração contemplando algo em tese exercitável. Dizemos em tese porque a eficácia do inciso sob comento depende de legislação integradora.9

Além disso, é importante destacar que em vários países a greve no funcionalismo público é expressamente proibida. Nesse sentido, cabe lembrar novamente o ensinamento de Celso Ribeiro Bastos:

A greve do funcionário público não é reconhecida em países de inequívoco avanço social, tais como Alemanha, Suíça, Áustria, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Dinamarca, conforme nos informa...

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