Reforma administrativa e marco legal das organizações sociais no Brasil - As dúvidas dos juristas sobre o modelo das organizações sociais

AutorProf. Paulo Modesto
CargoProfessor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Salvador (UNIFACS)
Páginas1-21

Professor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Salvador (UNIFACS). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Público da UNIFACS. Membro do Ministério Público da Bahia, do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB). Conselheiro Técnico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo da Bahia (IDAB). E-mail: paulomodesto@yahoo.com

Texto apresentado no II Congresso Interamericano sobre a Reforma do Estado e da Administração Pública promovido pelo CLAD--Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo, realizado na Ilha de Margarita, Venezuela, em outubro de 1997. Um esboço preliminar do texto foi preparado para uma reunião de trabalho com a Assessoria Jurídica da Casa Civil da Presidência a República em 1.2.1996. Agradeço ao Prof. CAIO TÁCITO as sugestões e os comentários enviados ao autor sobre o texto original deste trabalho. Texto atualizado em 3.11.97, por ocasião da edição da Medida Provisória n. 1591, de 9 de outubro, publicada no Diário Oficial da União de 10.10.1997, e, posteriormente, atualizado após a publicação da Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998. Este foi o primeiro trabalho publicado no Brasil sobre o texto final do projeto das Organizações Sociais no Brasil. Desenvolvimentos posteriores sobre o tema podem ser lidos no trabalho "Reforma do Marco Legal do Terceiro Setor no Brasil", publicado no número da Revista Diálogo Jurídico nº. 5.

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1. Reforma administrativa e reforma na mentalidade administrativa - O papel dos juristas

A reforma administrativa do aparelho do Estado no Brasil tem na introdução e alteração de normas no âmbito da Constituição da República e Page 2 das leis do país uma de suas etapas necessárias. Porém, a eficácia da reforma administrativa está condicionada ainda a uma concomitante reforma na mentalidade dos agentes públicos. É indispensável para a efetiva implementação da reforma pretendida que os agentes administrativos superem o tradicional vezo burocrático que vem convertendo a Administração, nas palavras de DROMI, numa cara "máquina de impedir", fiel ao que o mesmo autor batizou como o "código do fracasso", que dispõe: "artigo primeiro: não pode; artigo segundo: em caso de dúvida, abstenha-se; artigo terceiro, se é urgente, espere; artigo quarto, sempre é mais prudente não fazer nada" (1995:35).

A reforma administrativa iniciada no Brasil guarda semelhança com outras reformas do Estado ocorridas em várias partes do mundo, conforme se pode observar nas experiências relatadas por PALAZZO, SÉSIN e LEMBEYE no livro La Transformación del Estado (1992).

De fato, são aspectos comuns às diversas reformas contemporâneas do Estado:

  1. aplicação de novas técnicas de coordenação de serviços e atividades entre esferas políticas diversas (consórcios intergovernamentais, acordos-programas, convênios de delegação ou descentralização);

  2. estímulo à privatização de serviços econômicos competitivos sustentáveis em regime de mercado;

  3. transferência de funções do poder central para entes intermediários e locais;

  4. ampliação dos controles de produtividade e de economicidade, vale dizer, do resultado do trabalho administrativo (controles de eficiência);

  5. fortalecimento da autonomia das entidades personalizadas da administração indireta;

  6. incentivo à gestão direta pela comunidade de serviços sociais e assistenciais, fora do aparato burocrático do Estado, porém com apoio direto dele e com sua assistência permanente (organizações não governamentais, associações de utilidade pública, escolas comunitárias);

  7. estímulo ao pessoal administrativo no desenvolvimento de atividades-fins, com a concomitante diminuição ou terceirização de atividadesmeio, acompanhada de valorização das carreiras exclusivas de Estado, inclusive mediante adequação do padrão remuneratório ao mercado de trabalho;

  8. capacitação de pessoal dirigente e criação de carreiras específicas para altos gestores; Page 3

  9. elaboração do conceito de planejamento estratégico e fortalecimento dos setores administrativos responsáveis pela formulação de políticas públicas;

  10. consolidação e simplificação de procedimentos e processos no interior da administração;

  11. estímulo ao desenvolvimento de habilitações gerenciais flexíveis do pessoal administrativo, fator a ser considerado no próprio recrutamento, mediante a ampliação do grau de generalidade das atribuições contempladas nos cargos públicos;

  12. definição de novas formas de responsabilização dos agentes públicos pela gestão administrativa;

  13. adoção de programas de desregulamentação ou de simplificação da legislação (consolidação e codificação legislativa);

  14. ampliação dos mecanismos de participação popular na atividade administrativa e de controle social da administração pública.

    Essas tarefas, apenas mencionadas para formação de um quadro simplificado de referência, permitem também inferir os objetivos práticos que servem de base finalista aos projetos mais conhecidos de Reforma do Estado:

  15. objetivo econômico : diminuir o "déficit" público, ampliar a poupança pública e a capacidade financeira do Estado para concentrar recursos em áreas em que é indispensável a sua intervenção direta;

  16. objetivo social : aumentar a eficiência dos serviços sociais oferecidos ou financiados pelo Estado, atendendo melhor o cidadão a um custo menor, zelando pela interiorização na prestação dos serviços e ampliação do seu acesso aos mais carentes;

  17. objetivo político : ampliar a participação da cidadania na gestão da coisa pública; estimular a ação social comunitária; desenvolver esforços para a coordenação efetiva das pessoas políticas no implemento de serviços sociais de forma associada;

  18. objetivo gerencial : aumentar a eficácia e efetividade do núcleo estratégico do Estado, que edita leis, recolhe tributos e define as políticas públicas; permitir a adequação de procedimentos e controles formais e substituí-los, gradualmente, porém de forma sistemática, por mecanismos de controle de resultados .

    É manifesto que este amplo quadro de tarefas e objetivos somente é alcançável com a ação cooperativa dos envolvidos no processo de implementação das reformas, em especial com a colaboração dos juristas, responsáveis imediatos pela interpretação do direito reformado. Page 4

    Nesse sentido, recorde-se PONTES DE MIRANDA:

    "Fez-se cânon da Crítica moderna ser-lhe indispensável a simpatia.

    Interpretar a lei não é só criticá-la: é inserir-se nela, e fazê-la viver. A exigência, portanto, cresce de ponto, em se tratando de Constituição. Com a antipatia não se interpreta, -ataca-se; porque interpretar é por-se do lado que se interpreta, numa intimidade maior do que permite qualquer anteposição, qualquer contraste, por mais consentinte, mais simpático, que seja, do intérprete e do texto. Portanto, a própria simpatia não basta. É preciso compenetrar-se do pensamento que esponta nas regras jurídicas escritas; e, penetrando-se nelas, dar-lhes a expansão doutrinária e prática, que é o comentário jurídico. Só assim se executa o programa do jurista, ainda que, de quando em vez, se lhe juntem conceitos e correções de lege ferenda" (1987: 5)(Grifo nosso).

    Com efeito, parece possível interpretar e refletir sobre o que representa o programa das organizações sociais para a redefinição do modo de intervenção do Estado no âmbito social apenas se adotarmos uma atitude de abertura, de ânimo desarmado, negação da mentalidade burocrática antes referida, que desconfia do novo e o renega de plano, adulterando o seu sentido próprio a partir de antigos esquemas conceituais.

    Na verdade, a atitude oposta à de abertura, a atitude de bloqueio "a priori", é impensável e inaceitável entre juristas, que são profissionais do diálogo, acostumados a tratar cotidianamente com novas demandas políticosociais.

    O saber dos juristas é um saber de protagonistas, pois mediante o discurso dos juristas são estabelecidas decisões ou condições para a tomada de decisões jurídicas. Enquanto a maior parte das ciências opera com um objeto dado, que o cientista pressupõe como uma unidade estável, o objeto do jurista é um objeto lingüístico, socialmente condicionado, que se elabora e apresenta ao domínio público mediante a decisão interpretativa, amplamente influenciada pelo instrumental elaborado pela ciência do direito. Esta é a razão de se dizer, não sem algum exagero, que o objeto do saber do jurista não é algo dado ao seu conhecimento, mas o resultado do seu labor.

    Essa interferência da doutrina jurídica na definição e avaliação do direito vigente aumenta a responsabilidade social da dogmática jurídica e dos próprios juristas individualmente. Da dogmática jurídica, pois cabe-lhe estabelecer os limites do conhecimento jurídico válido (as condições de validação científica do labor dos juristas), restringindo o arbitrário interpretativo, estabelecendo métodos de trabalho que neutralizem ao máximo as puras inclinações subjetivas ou pessoais. Dos juristas, pois como agentes sociais que monopolizam o discurso técnico sobre as normas da coletividade, têm condições de antecipar as conseqüências negativas e positivas da aplicação das normas jurídicas aprovadas, propor novas pautas de solução de conflitos, bem como capacidade de enquadrar de forma argumentativa os novos conflitos no interior do direito já existente, enfraquecendo ou eliminando temporariamente conflitos...

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