Máscaras casmurras: reprodutibilidade, encanto, desencanto

AutorArtur de Vargas Giorgi
Páginas92-120
Máscaras casmurras: reprodutibilidade, encanto, desencanto – Artur de Vargas Giorgi Boletim de Pesquisa NELIC v. 10 n. 15 2010.2
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Esquerda(s), estrelas
Uma compreensão da modernidade brasileira pode ser
construída a partir da consideração da lógica da
reprodutibilidade técnica e seus desdobramentos em diferentes
aspectos da vida. Aqui, a imprensa torna-se um espaço
privilegiado, sobretudo pelo crescente apelo (desde a virada do
século) das imagens em suas páginas. Com o que uma análise
mais detida de alguns registros iconográficos do jornal Dom
Casmurro pode ser esclarecedora da relação da fotografia, do
cinema, da publicidade ilustrada e do próprio periodismo de
massas com a sensibilidade dos homens na modernidade1.
1 Valho-me nesta leitura de um recorte bem marcado: tive acesso apenas aos
três primeiros anos desse hebdomadário sediado no Rio de Janeiro, 1937,
1938 e 1939. A consulta dos arquivos foi realizada no acervo do NELIC –
Núcleo de Estudos Literários e Culturais –, no Centro de Comunicação e
Expressão da UFSC. Contudo, recorro também aos livros Na fogueira:
memórias (1998), de Joel Silveira, antigo colaborador do jornal, Literatura em
revista (1984), de Raúl Antelo, e à tese de Maria de Fátima Fontes Piazza,
Os afrescos nos trópicos: Portinari e o Mecenato Capanema, que, igualmente
se valendo desses dois trabalhos, articula a leitura em que o Dom Casmurro
e a revista Diretrizes, após a publicação, em 1940, de um número especial
da Revista Acadêmica em homenagem ao pintor de Brodósqui, figuram como
“palco da diatribe conhecida como ‘portinarismo’ versus ‘antiportinarismo’”
(2003, p. 236). Seguindo os rastros do nome Portinari e da polêmica em torno
do seu “oficialismo”, Maria de Fátima parece ter realizado uma leitura mais
ampla do jornal, acompanhando edições posteriores a 1939. Creio que vale
citar algumas das passagens da tese: “Esse hebdomadário teve como
redatores-chefes Álvaro Moreyra, Marques Rebelo e Jorge Amado, entre
agosto de 1939 a maio de 1940 [ainda que Marques Rebelo já figurasse
Máscaras casmurras: reprodutibilidade, encanto, desencanto – Artur de Vargas Giorgi Boletim de Pesquisa NELIC v. 10 n. 15 2010.2
Fundado por Brício de Abreu e Álvaro Moreyra (lançado em 13
de maio de 1937, circulou até 1946), o hebdomadário carioca
era considerado um jornal literário2, publicação “de esquerda” no
Estado Novo de Getúlio de Vargas3. E por isso foi um veículo
nessa função em setembro de 1938]; as ilustrações estiveram a cargo de
Santa Rosa, Augusto Rodrigues, Jarbas Andréa, Percy Deane e Jacques
Bertrand; e figuram no cabeçalho como secretários de redação Joel Silveira e
Danilo Bastos. O jornalista Joel Silveira, ao rememorar sua passagem pelo
semanário [em Na fogueira: memórias, de 1998], revelou o ‘clima’ de
descontração da redação; a influência dos semanários franceses ‘Gringoire’ e
‘Candide’ nas chamadas ‘Grandes Reportagens’ que o ‘Dom Casmurro’
procurava imitar e nas traduções de textos extraídos de periódicos
estrangeiros. [...] No hebdomadário ‘Dom Casmurro’ colaboravam muitos
intelectuais, principalmente Aníbal Machado, Dante Costa, Manuel Bandeira,
Mário de Andrade, Adalgisa Nery, Rachel de Queiroz, Rubem Braga, Sérgio
Buarque de Holanda, Henrique Pongetti, Guilherme Figueiredo, Afonso
Arinos de Melo Franco, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, José Lins do
Rego, Pedro Calmon, Joel Silveira, Murilo Mendes, Osvaldo Orico, Azevedo
Amaral, Jorge de Lima, Josué Montello, Jorge Amado, Genolino Amado,
Mário Lago, Manoelito de Ornellas, Omer Mont’Alegre, Edith Mangarinos
Torres, Wilson Louzada, Nelson Werneck Sodré e Orígenes Lessa. [...] O
diretor do semanário, Brício de Abreu, tinha uma forte identificação com a
cultura francesa, por isso dedicou-lhe um número especial (Ano I, n. 31, 23
dez. 1937) [...].” (PIAZZA, 2003, p. 236-238).
2 Para Joel Silveira, “o único jornal literário do país” (1999, s/p), mas
concorrente da Revista Acadêmica.
3 Novamente de Os afrescos nos trópicos: Portinari e o Mecenato Capanema:
“Tal qual a ‘Revista Acadêmica’, o semanário ‘Dom Casmurro’ posicionou-se
como um periódico cultural, dando espaço ao mundo das letras e das artes.
No ‘Dom Casmurro’, além de um artigo encomiástico ao Presidente da
República por ocasião do seu natalício, assinado por Brício de Abreu,
intitulado ‘Nós e o aniversário do Presidente’ (Ano II, n. 47, 21 abr. 1938),
também constatou-se um ideólogo do Estado Novo, Azevedo Amaral, com
um artigo ‘O intelectual e o Estado Novo’ (n. 41, 19 mar. 1938), o qual é
caudatário da política estadonovista para com os intelectuais [...]. [...] Em
ambas as revistas, encontram-se artigos que tinham como escopo explicar o
projeto político estadonovista, como os acima citados e o publicado na
que evidenciou as contradições e os embates de forças que
delineavam o imaginário urbano, não apenas no que diz respeito
à tensão entre diferentes orientações políticas em contexto
repressor, mas igualmente no que tange ao confronto de
concepções da e para a cultura, sendo, portanto, um dispositivo
marcado das transformações ligadas às técnicas de reprodução
e sua assimilação pela sociedade.
Em suas páginas, textos de renomados autores e a
forte influência parisiense viviam lado a lado com a seção
“Câmera”, exclusivamente voltada a assuntos de cinema: o que
estava em cartaz, a vida pessoal dos artistas, notícias de
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‘Revista Acadêmica’ ‘Que é o Departamento Nacional de Propaganda?’.
Como se viu, foi deste órgão de propaganda estatal que nasceu o ‘todo-
poderoso’ DIP, o qual exerceu com ‘mão-de-ferro’ controle sobre a imprensa
brasileira. ‘Dom Casmurro’ posicionava-se politicamente [ainda que, de 1937
a 1939, os editoriais de Brício de Abreu frisassem mais de uma vez a sua
preocupação com a cultura e a classe intelectual, mais do que com a política
propriamente dita e seus embates, postura confirmada por Joel Silveira em
seu livro de memórias], quando publicou em 1937 o ‘Manifesto dos
Intelectuais’: o primeiro, em maio, de apoio à candidatura de José Américo de
Almeida à presidência da República [segundo Joel Silveira, a opção dos
esquerdistas e liberais]; e o segundo, em setembro, em apoio ao povo
espanhol contra as tropas do general Franco, que tinham protagonizado o
bombardeio à cidade basca de Guernica, na Guerra Civil Espanhola. Aqui,
cabe explicar que tanto ‘Dom Casmurro’ quanto a ‘Revista Acadêmica’
estavam em dissonância com o projeto político do Estado Novo [...]” (PIAZZA,
2003, p. 240-241). Com o que vemos como no jornal se arma a complexidade
das relações entre política e cultura nos anos 30-40. Em uma nota de
Literatura em revista, diz Raúl Antelo: “o hebdomadário Dom Casmurro,
apesar de fama e fachada ‘subversivas’ para a época, empenhou-se como
poucos na defesa de iniciativas getulistas” (1984, p. 89).

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