Memórias do Porto

A sétima edição da Revista dos Estudantes de Direito da UnB, fiel ao compromisso de celebração e consolidação da memória institucional de nossa Academia, teve a honra de receber, em uma longa e instigante conversa, as preciosas lições do mestre Walter Ramos da Costa Porto. O professor Costa Porto, recentemente aposentado da prática docente na graduação da UnB, recebeu-nos em seu escritório numa chuvosa manhã de sexta-feira, com a simpatia e carinho que lhe são peculiares.

Nessa oportunidade, constatamos que o verdadeiro professor jamais abandona o magistério, ainda que não o faça mais nos estreitos limites da lousa. Cada dizer do mestre Costa Porto é uma lição calcada em sólida experiência de vida e em profunda reflexão teórica, as quais, transcendendo os liames puramente jurídicos, corporificam-se numa viva manifestação narrativa de quem foi observador privilegiado e ator de transformações no pensamento social, nas instituições públicas e, especialmente, nesta Universidade.

Fundador do Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais e professor da Faculdade de Direito, todas da Universidade de Brasília, o franzino pernambucano de níveos cabelos é referência obrigatória em Direito Eleitoral e História Política, tendo escrito, entre outros estudos jurídicos e políticos de escol, o Dicionário do Voto e A Mentirosa Urna. A Política, como ciência e vocação, esteve presente na vida do professor Walter Costa Porto desde a sua mais tenra idade: filho do deputado José da Costa Porto, que fora Constituinte em 1946 e Ministro da Agricultura no governo Café Filho, cresceu rodeado da vivência institucional que, casada às reflexões de aluno brilhante e aplicado da Universidade Federal de Pernambuco, lastrearam-lhe uma rica preparação, posta a serviço da coisa pública e do esforço universitário, desde a primeira juventude.

A experiência vasta, em apertadíssima síntese, inclui, além de portentosa produção editorial, a presidência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, a presidência da Comissão de estudos para reforma do Código Eleitoral, a atuação como Ministro do Superior Tribunal Eleitoral, não bastasse ter sido designado pela ONU para compor o Tribunal Internacional Eleitoral, em nome do qual atuou em Moçambique. Confessou-nos o mestre, entretanto, que, de todas as funções já desempenhadas, mais honrosa e aprazível que o exercício do magistério, não há outra. Munido desse espírito, o professor, com a simplicidade e narratividade típicas, conversou conosco e nos deu a oportunidade de depor nas páginas seguintes alguns tostões de sua rica memória.

Sem mais delongas, passemos a entrevista.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB: O objeto principal dessa entrevista é que o Sr. nos dê um panorama da sua trajetória no direito, sua relação com a UnB.

PORTO: Eu entrei na Universidade de Brasília em 1976. Eu fui chamado e, então, viemos - eu, Vamireh Chacon, Padre Aleixo, Carlos Cardim - formar o que seria o Departamento de Ciência Política. Então imaginamos o Departamento. Mas houve insistência, naquele tempo, para que fizéssemos o Departamento de Relações Internacionais. Então o Departamento ficou de Ciências Políticas e Relações Internacionais. A minha idéia, que eu disse muitas vezes para o Reitor, é que havia um mercado cativo do Itamaraty e que melhor seria se nós entregássemos o curso (de Relações Internacionais) ao Itamaraty. Já havia, na verdade o que hoje é o Instituto Rio Branco, e se pensava à época que ele deveria ser adotado pela Universidade de Brasília. Houve os entendimentos, mas, na verdade não se chegou a um final. Então ficou o Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais.

Ao mesmo tempo, eu gosto muito de editar, fizemos um trabalho muito grande na Editora da Universidade de Brasília, sobretudo Carlos Cardin, que foi Decano de Extensão. Esse foi um momento que eu considero grandioso. Talvez o melhor programa cultural de uma universidade no país. A USP tinha um trabalho muito bom, mas eu acho que a Universidade, naquele período, se superou com a edição de uma coleção chamada Pensamento Político - uns livros de capa amarela, que vocês devem conhecer.

Fizemos, eu acho, uns setenta e poucos volumes, publicando, por exemplo, todo Maquiavel. De Maquiavel só se publicava aqui no Brasil o Príncipe, umas quarenta mil edições. Nós publicamos todo Maquiavel. Acho que só ficou de fora a História de Florença. Nós o entregamos, mas a Editora ao tempo não publicou. Publicamos também Popper1. Naquele tempo, o Reitor tinha um programa cultural avançado em que se chamavam grandes nomes, sobretudo da Ciência Política. Duverger2 veio, eram muitos. E ele fazia às vezes uma reunião com muitos; dez, quinze grandes nomes. Eu até o condenava porque eu queria que viesse um só, para que nós pudéssemos explorá-lo devidamente. Duverger parece que veio duas vezes. Popper, como eu estava contando, não pode vir, a mulher dele estava doente.

O nosso Bobbio3 veio e houve também uma publicação inteira. Todo o Bobbio nós publicamos. Naquele tempo, foi Carlos Cardin, que viajava e visitava os estudiosos, quem visitou Bobbio e Popper. Eu gosto de contar uma historinha de uma visita dele a Popper. Popper morava numa casinha, numa espécie de subúrbio de Londres, no norte. Pegava-se um metrô e, depois, pegava-se um táxi. E, curiosamente, o táxi, o homem que dirigia o taxi, era conhecido de Popper e ia buscar todas as pessoas que visitavam o filósofo. Chamava-se Platão o tal homem! (Risos).

E então, Cardin foi visitá-lo e estava, nesse tempo, com o Padre Aleixo. Quando Cardin foi combinar a visita com Popper, Aleixo disse que queria ir também. Aí foram os dois. Tocaram a campainha. Popper a apareceu e sua primeira pergunta foi: "o senhor não disse que vinha só?". Coisa de europeu. Foram, Popper, sempre muito cordial, para uma espécie de jardim que tinha uma árvore de vinte metros de altura. Popper disse: "Era um arbusto quando eu comecei a me defrontar com certos problemas filosóficos. Hoje é uma árvore e eu ainda não resolvi os meus problemas".

Mas houve esse cuidado com a cultura e a Universidade foi, na verdade, esse centro irradiador. Publicamos muito. Havia também uma coleção cinzenta com dados sobre a política brasileira que foi coordenada por Otaciano Nogueira, que já se aposentou também. Esse eu acho que publicou cento e poucos volumes. Foi um belo trabalho o que a Universidade continuou a editar, mas, para minha discordância, não continuou a coleção. Eu, então, ensinei Ciência Política até que um problema político me separou do Reitor e eu fui demitido. Passei um ano fora, daqui a pouco me chamam de volta. Passei mais um ano ou dois em Ciência Política. Fui então para o Direito, onde comecei a ensinar História Constitucional. Era o "Constitucional II", da época, que hoje está restrito a Controle de Constitucionalidade.

Isso era pra mim uma coisa muito boa. Eu estava trabalhando em cargos públicos, secretário-geral do Ministério da Justiça, assessorias. Isso me dava uma certa liberdade e uma obrigação de estudar. O professor estuda mais do que os alunos ou, pelo menos, deve estudar mais do que os alunos. Esse contato com os jovens é muito interessante, muito estimulante. O fato de ter de se preparar para as aulas, coordenar o pensamento e controlar o que diz e o que vai dizer, manter a autoridade sobre a classe, tudo isso é uma escola fantástica. O professor não somente deve estudar mais como, sobretudo, eu acho que aprende mais.

Então eu posso dizer que a melhor experiência da minha vida foi a das aulas. Meu pai foi professor. Professou a vida toda. Foi jornalista, político, professor. Eu acho que essa mistura é boa. A pessoa não deve ser só professor. Havia muitas queixas de que os professores do Direito eram professores-táxi, davam aula e saíam. Mas eu penso que essa experiência no campo concreto ajuda muito nas aulas. O professor não deve ser aquele sujeito com a experiência só do tampo da mesa. Por outro lado, eu, paraninfo uma vez de uma turma, lembrei que um Ministro do Trabalho, o Marcondes Ferraz, dizia que a carteira de trabalho era o espelho de uma vida. Por ela se podia ver se o trabalhador não foi uma abelha dardejando de flor em flor, quer dizer, lutando contra a dispersão. Eu acho que essa dispersão é rica, porque essa experiência de vida pode muito bem ser transmitida e pode ser uma boa lição para aqueles que vão se preparar para os trabalhos de depois.

Já me aposentei. Até antecipei minha aposentadoria. Aposentei-me antes dos setenta anos e tenho uma saudade grande. Ainda dou muita aula hoje. O pessoal da Justiça Eleitoral sempre me chama e eu vou a muitos estados. Fui ao Pará recentemente, quase fui à Paraíba agora, mas desisti de última hora. Tenha agora alguns cursos programados. Há ainda agora um curso que dou, por força de um convênio da Universidade de Brasília com o Tribunal Regional Eleitoral e com o Tribunal Superior Eleitoral, voltado para os juízes e servidores da Justiça Eleitoral. Antes de junho, todo ano, começa mais uma fase desse curso. Então, quem ensina tem esse gosto de ensinar sempre e eu acho que eu tive um ganho enorme com essa atividade docente.

Revista: Professor, nós fomos seus alunos de Teoria Geral do Estado na UnB. Que relatos o senhor têm da experiência nessa disciplina?

PORTO: Eu ensinei Teoria também? (Risos). Eu dava a mesma coisa. Eu não lembrava que eu ensinei Teoria não. Mas variava pouco. Vocês sabem a história da Teoria Geral do Estado no Brasil foi Getúlio querendo afastar os professores de Direito Constitucional por conta da ditadura. Engraçado. Foram, na verdade, os professores de Direito Constitucional que mais lutaram para a derrocada da ditadura de 37. Houve os manifestos. Eu acho que em 44 foram os primeiros...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT