O mercado de fertilização in vitro no Brasil: elementos socioculturais e emocionais presentes na doação e na recepção de óvulos

AutorMaria Chaves Jardim
CargoProfessora de Sociologia-Departamento de Sociologia da FCLar, UNESP e do Programa em Pós-graduação em ciências sociais da UNESP. Doutora em Ciências Sociais, UFSCar Pós-doutorado, FMSH-França
Páginas15-46
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2022.e91402
1515 – 46
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O mercado de fertilização in vitro
no Brasil: elementos socioculturais e
emocionais presentes na
doação e na recepção de óvulos
Maria Chaves Jardim1
Resumo
O Brasil é o país da América Latina que mais realiza fertilização in vitro. A maior presença de
mulheres acima de 40 anos neste mercado indica uma realidade pouco discutida: a fertilização in
vitro realizada por meio de óvulos doados. É sobre a doação e a recepção de óvulos que esse artigo
se interessa. Nossa inspiração teórica vem da sociologia econômica dos mercados em diálogo com
a sociologia das emoções, pois buscamos identicar elementos não econômicos que sustentam o
mercado de doação de óvulos, já que não existe neste uma troca direta em dinheiro. Realizamos
mapeamento do marco jurídico do setor e pesquisa de campo em uma importante clínica de re-
produção assistida da cidade de Ribeirão Preto2, no estado de São Paulo e realizamos imersão em
um grupo fechado do Facebook que trata do tema. Nossos dados indicam que este mercado se
sustenta em elementos sociais, culturais e emocionais, como o altruísmo, o sacrifício, o sagrado,
dentre outros.
Palavras-chave: Sociologia econômica. Mercado de fertilização in vitro. Emoção. Altruísmo.
Sacrifício.
1 Professora Livre Docente em Sociologia Econômica do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-
-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP)
de Araraquara. Bolsista Produtividade CNPQ. E-mail: maria.jardim@unesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-
0001-5715-1430.
2 O nome da clínica será mantido em sigilo por questões éticas.
O mercado de fertilização in vitro no Brasil: elementos socioculturais e emocionais
presentes na doação e na recepção de óvulos | Maria Chaves Jardim
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Introdução
Em 2018, o primeiro bebê de proveta, a britânica Louise Joy Brown, com-
pletou 40 anos. Desde então, estima-se que mais de 8 milhões de bebês já
nasceram no mundo a partir de alguma das técnicas de reprodução assisti-
da existente. No Brasil, a primeira criança gerada por fertilização in vitro,
Ana Paula Bettencourt Caldeira, nasceu em 1984, na cidade de São José
dos Pinhais, Região Metropolitana de Curitiba.
No Brasil, o tema é recorrente em relatos de celebridades que já pro-
curaram a reprodução assistida para vencer a infertilidade. O caso do então
célebre casal – na época, formado pelos âncoras do Jornal Nacional, Fátima
Bernardes e William Bonner – que teve seus trigêmeos por meio da técni-
ca, realizada em Ribeirão Preto, São Paulo, é o exemplo mais conhecido.
Em 2017, a cantora Ivete Sangalo anunciou a gravidez de gêmeos, resulta-
do de fertilização in vitro. No ano de 2019, o lho transgênero da cantora
Gretchen, Tammy Miranda, anunciou a gravidez de sua namorada, por
meio de uma fertilização in vitro, realizada nos Estados Unidos.
Objeto “[...] de intenso debate em saberes eruditos como o direito, a
bioética, a psicanálise, além de ser uma importante preocupação para pes-
quisadoras feministas e para a Igreja católica, as novas tecnologias repro-
dutivas ultrapassam os saberes eruditos” (LUNA, 2007, p. 15) e povoam o
imaginário popular, a partir sobretudo das novelas, que tratam o tema de
forma romantizada e com equívocos FERREIRA, 2016). Dentre os erros
mais comuns, cita-se a inexistência de referências às baixas taxas de sucesso,
aos riscos à saúde da mulher ou aos elevados custos nanceiros (CORRÊA;
LOYOLA, 2015).
Segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
o número de fertilizações por meio da técnica de fertilização in vitro vem
crescendo no Brasil. De acordo com o 12º Relatório do Sistema Nacional
de Produção de Embriões, em 2018 foram realizados 43.098 ciclos de fer-
tilização in vitro, contra 36.307 em 2017. A comparação entre os dois anos
resultou em um crescimento de 18,7% na quantidade de procedimentos
APOLINÁRIO, 2019).
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 21 - Nº 51 - Mai./Ago. de 2022
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O relatório da Anvisa de 2018 indica que a Região Sudeste é a respon-
sável por 65% dos 78 mil embriões congelados do país. A Região Sul tem
13%, a Nordeste 12%, a Centro-Oeste 8% e a Norte 2%, que nalizam a
lista da distribuição, em porcentagem, de embriões criopreservados no ano
de 2017 (APOLINÁRIO, 2019).
Segundo Apolinário (2019), o Brasil lidera o ranking latino-americano
dos países que mais realizaram fertilização in vitro, inseminação articial
e transferência de embriões – 83 mil bebês brasileiros nasceram, em 25
anos, por meio de tratamentos de reprodução assistida. A Argentina gura
em segundo lugar, com 39.366 nascidos e, na sequência, o México, com
31.903.
Pesquisas mostram uma mudança no perl das mulheres que recorrem
a esse mercado. Nos anos 2000, mulheres com idade abaixo de 34 anos
eram as responsáveis por realizar metade dos tratamentos. Em 2016, o per-
centual caiu para 28%, quando a demanda pelo tratamento duplicou entre
as mulheres acima de 40 anos. O percentual, que era de 14,9%, atingiu,
em 2016, 31% APOLINÁRIO, 2019).
A maior presença de mulheres acima de 40 anos neste mercado indica
uma realidade pouco discutida, a fertilização in vitro realizada por meio de
óvulos doados. É sobre isso que este artigo se dedica, por tratar-se de uma
troca mercantil que não passa diretamente pelo dinheiro. Nossa inspiração
teórica vem da sociologia econômica, pois buscamos identicar elementos
não econômicos no mercado de ovodoação e ovorecepção. Também esta-
mos na fronteira com a sociologia das emoções, ao tratarmos as dores, os
sofrimentos e as alegrias próprias desse mercado.
Esse texto foi composto a partir de dados coletados em pesquisa em-
pírica em clínicas de reprodução assistida de Ribeirão Preto, São Paulo,
e também realizamos uma imersão em um grupo fechado do Facebook,
quando interagimos com mulheres que citamos neste texto. Além disso,
assistimos lives disponibilizadas no grupo e acompanhamos a discussão
pública sobre o tema. Por m, mapeamos o marco jurídico do setor. Aqui
é importante compartilhar sobre o trânsito facilitado que tenho junto à
clínica estudada e junto a uma parte da equipe médica, uma vez sou con-
sumidora desse mercado e especialmente dessa clínica, pois z a captação

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