Mercados como Arenas de Luta por Reconhecimento: disputas morais na construção dos dispositivos de qualificação dos alimentos

AutorPaulo André Niederle
CargoProfessor dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia
Páginas97-130
http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15n33p97
9797 – 130
Mercados como arenas de luta por
reconhecimento: disputas morais
na construção dos dispositivos de
qualif‌icação dos alimentos
Paulo André Niederle1
Resumo
A compreensão dos mercados como arenas de lutas por reconhecimento ainda não foi devida-
mente considerada pelos estudos agroalimentares, o que limita a compreensão de alguns proces-
sos de distinção e qualif‌icação. A partir de uma aproximação entre a Teoria do Reconhecimento
e a Sociologia Econômica, este artigo analisa as disputas morais que cercam a construção dos
dispositivos de valoração dos alimentos. O foco recai na construção dos selos que identif‌icam
produtos de agricultores familiares, quilombolas e indígenas. Reagindo a um histórico de desres-
peito e injustiça, estes atores começam a utilizar os mercados para empreender lutas por reconhe-
cimento, af‌irmando valores que distinguem suas identidades sociais. A institucionalização destes
selos, com protagonismo estatal, revela conf‌litos valorativos que opõem uma lógica particularis-
ta, que defende reservar o selo a produtos estreitamente associados às identidades destes grupos
sociais, e uma lógica generalista, que aposta na sua ampla disseminação, associando-o a uma
vasta gama de produtos de empresas e cooperativas agroindustriais.
Palavras-chave: Sociologia econômica. Instituições. Alimentos.
1 Introdução
Amplamente discutida por algumas das mais importantes tradições das
ciências sociais, a compreensão dos mercados como mecanismos de (re)dis-
tribuição econômica também se tornou recorrente nos estudos agroalimenta-
res. O mesmo não ocorre, contudo, com a ideia de que os mercados podem
constituir arenas para “lutas por reconhecimento”, perspectiva que acentua
as disputas normativas e morais nas quais os atores sociais se engajam para
1 Professor dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e Desenvolvimento Rural (PGDR) da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: pauloniederle@gmail.com
Mercados como arenas de luta por reconhecimento: disputas morais na construção dos dispositivos de qualif‌icação dos alimentos |
Paulo André Niederle
98 97 – 130
acessar direitos, garantir justiça e gozar de estima social. Embora ocupe um es-
paço igualmente relevante na formação das humanidades – sobretudo a partir
de Hegel, mas também com Freud, Winnicot e Mead –, a questão do reco-
nhecimento tem sido apenas tangencialmente discutida na análise das arenas
econômicas, e menos ainda nos estudos sobre os mercados agroalimentares.
Na análise dos mercados, a maioria das abordagens ainda é refém dos
pressupostos neoclássicos, que se amparam na representação de um meca-
nismo abstrato, impessoal, impermeável a qualquer tipo de moralidade.
Os sosticados modelos transacionais contemporâneos, construídos em
torno da Teoria dos Jogos e da Nova Economia Institucional, também
não fogem a esta regra. Não obstante, mesmo algumas das principais tra-
dições da economia política, avessas aos pressupostos utilitaristas, nunca
conseguiram efetivamente se desfazer da leitura distorcida dos sentimentos
morais propalada por Adam Smith e agravada pela revolução marginalis-
ta. Dentre os críticos da mão invisível, também acabou prevalecendo a
percepção do mercado como um enorme “moinho satânico”, responsável
por uma “avalanche de desarticulação social” POLANYI, 1980, p. 51). Ou,
como diria Max Weber (2009, p. 420), uma estrutura orientada, “de modo
especicamente objetivo, pelo interesse nos bens de troca e por nada mais”.
É compreensível, portanto, que a sociologia e a antropologia tenham
preterido os mercados, tornando-os uma obsessão quase exclusiva dos eco-
nomistas, a maioria dos quais se encarregou de solidicar a imagem de uma
máquina responsável por mercantilizar todos os componentes da vida social.
Foi somente no nal dos anos 1980 que uma nova geração de sociólogos
e antropólogos econômicos passou a dedicar esforços para demonstrar que
os mercados são construções sociais e políticas. Desde então, as ciências so-
ciais passaram a assistir a um interesse crescente pelas contribuições da Nova
Sociologia Econômica (NSE), corpo teórico heterogêneo cuja frágil unidade
constrói-se em torno da ideia de enraizamento (embeddedness) social, político,
cultural e cientíco dos mercados (MARQUES, 2003).
A partir de uma aproximação entre aportes institucionalistas da NSE, em
particular da teoria pragmatista construída por Luc Boltanski e colegas, e a
teoria do reconhecimento de Axel Honneth – um discípulo de Habermas que
tem procurado renovar a teoria crítica frankfurtiana –, neste artigo propomos
uma análise dos conitos normativo-político-morais que cercam a inserção
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 15 - Nº 33 - Maio./Ago. de 2016
9997 – 130
dos agricultores nos mercados agroalimentares.2 O foco volta-se ao processo
de institucionalização de três selos utilizados para identicar produtos de agri-
cultores familiares, quilombolas e indígenas. Embora o primeiro (“Aqui tem
Agricultura Familiar”) já esteja presente em alguns produtos, os dois últimos
(“Quilombos do Brasil” e “Indígenas dos Brasil”) foram regulamentados mais
recentemente, de modo que ainda não possuem uso recorrente. Embora isso
impossibilite uma análise dos efeitos em termos de redistribuição econômica,
não bloqueia um olhar para construção institucional das normas e padrões
que orientam o uso desses dispositivos de qualicação e reconhecimento.3
A análise prioriza três questões. A primeira diz respeito à construção do
aparato normativo que regula o uso dos selos. A partir da identicação das
normas que denem quem tem acesso ao dispositivo, como o mesmo deve
ser utilizado e onde os produtos podem circular, interessa compreender os
valores sociais que distinguem os produtos e, com isso, as pessoas e os grupos
envolvidos nas trocas econômicas e simbólicas. A segunda questão focaliza a
articulação entre o reconhecimento enquanto política de Estado e o processo
de autorreconhecimento, o qual depende das percepções que os próprios su-
jeitos e grupos constroem acerca das suas identidades. Finalmente, associada a
esta discussão emerge o interesse em compreender como a luta por reconheci-
mento enseja uma articulação entre Estado e Mercado. Geralmente analisadas
a partir das reivindicações por direitos que se orientam ao Estado – e que tem
como objetivo a construção de políticas públicas –, neste caso as lutas por
reconhecimento se dirigem à arena dos mercados. Mas isso não signica a
ausência do Estado. Pelo contrário, na medida em que este também deixa de
ser concebido como uma esfera isolada da ontologia social, e adentra a arena
pública como uma grande coalizão (instável e contraditória) de organizações
administrativas, podemos perceber a ação protagonista que o Estado exerce na
construção social destes mercados.
2 Os resultados são oriundos de pesquisa conduzida em 2015 no âmbito do Projeto “Normatizar em Nome de
qual Desenvolvimento? A construção dos mecanismos de regulação nos novos mercados alimentares”, sob os
auspícios do CNPq. As informações foram coletadas a partir de fontes documentais e entrevistas com gestores
públicos e representantes de movimentos sociais e sindicais.
3 As normas analisadas correspondem àquelas em vigência em 2015. Segundo informação concedida por um
gestor público do Ministério do Desenvolvimento Agrário, está em curso um processo de reestruturação do
arranjo normativo, mas que, no momento, deve trazer apenas alterações incrementais relativas à gestão e ao
controle do uso dos selos.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT