Os modelos de administração pública como estratégias complementares para a coprodução do bem público

AutorJosé Francisco Salm - Maria Ester Menegasso
CargoDoutorado (Ph.D.) em Administração Pública pela Universidade do Sul da California (USC - EUA). - Doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC.
Páginas83-104

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José Francisco Salm 1

Maria Ester Menegasso 2

1 Introdução

A administração pública, desde o seu início, fez uso da organização burocrática como principal estratégia para alocar recursos e produzir o bem público. Vista dessa forma, a administração pública “é a mais evidente parte

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do governo; é o governo em ação, é o executivo, operante, o mais visível aspecto do governo...” (WILSON, 1887, p.199). Em um segundo momento, a administração pública passou a tratar, também, da formulação, da implementação e da avaliação da política pública (WALDO, 1980). Esse modelo de administração pública é denominado, por alguns autores, administração convencional ou velha administração pública (DENHARDT, DENHARDT, 2003).

A partir das últimas décadas do século passado, os dilemas impostos pelos limites fiscais tornaram o estado do bemestar social inviável e a administração pública passou a ser vista apenas sob o prisma da eficiência, da redução dos gastos públicos e dos cortes orçamentários. Em tais condições, ela foi reduzida à instrumentalidade do mercado, não compartilhando a esfera ou o domínio público (ARENDT, 1958; GOODSELL, 2003; CAMPBELL, 2005) ou, ainda, a sociedade politicamente articulada (VÖEGELIN, 1952). Esse modelo de administração pública, denominado nova gestão pública, transformou o cidadão em cliente ou consumidor a quem cabe fazer escolhas, como se estivesse na esfera privada (BARZELAY, 2001).

Esses modelos de administração pública ? com exceção de propostas isoladas ? foram concebidos a partir de categorias epistemológicas que consagram a burocracia como referência para a produção dos serviços públicos e o mercado como o melhor alocador do bem público. A crítica que esses modelos vêm sofrendo também está relacionada com essas bases epistemológicas. Assim, a velha administração pública, com a sua impessoalidade e forma de dominação, é vista como ineficiente e de elevado custo (KETLL, 2000), enquanto a nova gestão pública, ancorada no mercado, é criticada por descaracterizar a esfera pública e a democracia (SPICER, 2004; BATTISTELLI, RICOTA, 2005; POTOSKI, PRAKASH, 2004; VENTRISS, 2002).

Algumas propostas isoladas e emergentes de administração pública estruturaram a sua base epistemológica a partir dos princípios que caracterizam a esfera pública e a democracia. Com base nesses princípios, tais propostas contêm críticas ao modelo da velha administração pública e à nova gestão pública (BELLONI, 1980; DENHARDT, DENHARDT, 2003). Mas essas propostas também são frágeis, porque não oferecem estratégias para tornar eficiente a produção e a alocação do bem público.

Em suma, o modelo da velha administração pública é ineficiente e oneroso para a sociedade, a nova gestão pública enfatiza a esfera privada em

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detrimento da esfera pública e as propostas emergentes propõem poucas ações para superar os problemas dos demais modelos. Quando analisados sob tais prismas, isoladamente, os modelos de administração pública são pouco eficazes para produzir e alocar o bem público para a sociedade. Contudo, a sociedade a quem a administração pública serve não é constituída de um modelo puro, isolado e de um único espaço linear para a existência humana. Pelo contrário, a sociedade é constituída de múltiplos espaços e modelos (RAMOS, 1981; SANTOS, 1988).

Portanto, os modelos e as propostas emergentes de administração pública não podem ser analisados e criticados como se cada um deles fosse um fenômeno único, isolado, aplicado à sociedade como um todo homogêneo. Em outros termos, os modelos e as propostas de administração pública aplicamse à realidade social em que há múltiplos espaços para a existência humana, cada qual com suas exigências e necessidades próprias. Considerados sob esse prisma, os modelos integram a administração pública e são necessários à sociedade politicamente articulada e ao cidadão que dela faz parte. Cabe, agora, discutir e demonstrar a validade dessa assertiva.

Este artigo tem como objetivo demonstrar que os modelos e as propostas de administração pública, quando analisados sob uma mesma base epistemológica, são complementares entre si, cada um com o seu espaço de aplicabilidade na sociedade politicamente articulada; por via de consequência, que o bem público é coproduzido em rede, da qual fazem parte esses diversos modelos e propostas, assim como outras instâncias que compõem a sociedade.

Para atingir esse objetivo, é necessário, além desta (1) introdução, (2) reconceituar a administração pública a partir de uma base teórica que tenha como foco de estudo a sociedade politicamente articulada e a concepção do que é o ser humano, como artífice, na construção dessa sociedade. A teoria da delimitação dos sistemas sociais, quando estudada sob o prisma de uma sociedade multicêntrica, oferece essa base teórica. Ainda com base nessa reconceituação, os (3) modelos e propostas de administração pública podem ser rediscutidos com o propósito de demonstrar a sua complementaridade e a rede de coprodução do bem público da qual fazem parte. Algumas (4) considerações acerca do estudo e da pesquisa sobre a administração pública e a listagem das (5) referências encerram este artigo.

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2 A Reconceituação da Administração Pública com Base na Teoria da Delimitação dos Sistemas Sociais

Com o propósito de reconceituar administração pública, serão aqui discutidas as principais categorias epistemológicas da teoria da delimitação dos sistemas sociais. Essas categorias serão ordenadas com base na concepção de (1) ser humano; de (2) sociedade, mercado e organizações. O fecho se fará com a (3) reconceituação de administração pública.

É necessário esclarecer que, neste artigo, a teoria da delimitação dos sistemas sociais não será enfocada em toda a sua complexidade. O propósito é, tão somente, dela extrair as categorias epistemológicas necessárias à reconceituação da administração pública.

2. 1 A Concepção de Ser Humano

O ser humano, na concepção da teoria da delimitação dos sistemas sociais, é um ser único e multidimensional. Único, porque só ele pode agir e analisar as suas ações com liberdade, encontrando nelas legitimidade ou não. Portanto, só ele pode ser responsável, perante si mesmo, pelas ações que lucidamente realizar, sob o império da razão. Multidimensional, porque é, ao mesmo tempo, um animal político, social e econômico (CORNFORD, 1976). Ele é, por excelência, um ser que necessita participar com os outros e da participação dos outros para construir a sua existência e a dos outros (ROBERTS, 2004). Por isso o ato de participação na esfera pública, inclusive coproduzindo o bem público, pertence à condição humana, ele é inerente ao animal político. O ser humano pode viver a sua existência integralmente graças ao uso da razão que lhe proporciona a consciência da realidade da própria vida (VÖEGELIN, 1977). O enfoque seguinte trata da concepção de sociedade, mercado e organizações.

2. 2 Concepção de Sociedade, Mercado e Organizações

A teoria da delimitação dos sistemas sociais categoriza os espaços da existência humana em fenonomia, isonomia e economia, e foca primordialmente esses espaços em lugar de priorizar a sociedade como um todo. Arendt (1958) faz a mesma projeção ao confrontar a esfera pública com a esfera

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privada. No âmbito da teoria que orienta esta discussão, cabe, portanto, em vez da análise da sociedade, a análise dos espaços da existência humana.

O conceito de espaço segue o pensamento de Santos (1988). Esse autor define espaço como um fato que perpassa o mundo concreto, positivo, e o mundo das ideias. No mundo concreto, positivo, ele é o espaço físico de que necessita o geógrafo para compor os seus mapas ou o arquiteto para elaborar os seus projetos. No mundo das ideias, ele é o espaço da história e da convivialidade humana, impossível de ser medido por uma escala métrica. Ele é o espaço da existência humana que transcende as aparências. Embora não possa ser ele medido por um aparato físico, negar que exista é negar a existência da mente e do próprio ser em sua condição humana.

A fenonomia é um espaço pessoal, do ser político, necessário à existência humana. Em um mundo sem espaços verdadeiramente pessoais, fenece a razão, a ética, a unicidade e a multidimensionalidade humana e o equilíbrio da mente. Sem esse espaço, o ser humano se brutaliza, se aliena de si próprio e apenas reage de acordo com a regra social (VÖEGELIN, 1978).

A isonomia é o espaço dos iguais, da comunidade e da democracia participativa ou comunal. As organizações sociais encontram no espaço isonômico o seu habitat por excelência. Sem espaços isonômicos, o ser humano perde a sua relação de igualdade com o outro, sua capacidade de concretizar o seu fazer com os outros. Pior, perde a tensão existencial, necessária para a realização do sentido da vida (FRANKL, 1991). O espaço isonômico é apropriado para o desenvolvimento de organizações sociais que, além de produzir bens e serviços, oferecem a oportunidade para o exercício da convivialidade e da realização pessoal (MASLOW, 1943; GERMINO, 1982).

A economia é um espaço de desiguais, em que se legitima a dominação (WEBER, 1978). Ela se caracteriza pela eficiência para a produção e alocação de bens e serviços. É um espaço também necessário à existência da vida, pois, sem ele, não poderiam ser satisfeitas muitas das necessidades humanas, tanto as de natureza...

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