O direito e o estado moderno: Anotações acerca da teoria positivista da estatalidade do direito

AutorVitor Hugo Nicastro Honesko
CargoMestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor de Filosofia do Direito da UNOPAR
Páginas43-48

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1 A Ciência do Direito e seu Objeto

A ciência exerce uma influência na condução da humanidade poucas vezes vista na história, podendose comparar ao papel da Igreja na Alta Idade Média. Neste sentido, pode-se afirmar que o futuro da sociedade sempre é escolhido levando em conta parâmetros científicos. Quando a discussão sobre a ciência alcança o tema do Direito, não há como afastar desta discussão as proposições sobre a ciência que tem o Direito como objeto, isto é, a Ciência do Direito.

O cientista do direito não dever ser aquele teórico que busca incessantemente o conhecimento pelo conhecimento, mas sim aquele que se debruça sobre os delicados problemas jurídicos na tentativa de achar soluções plausíveis para a sociedade. Suas concepções teóricas, mediata ou imediatamente, fazem, refazem ou desfazem coisas; constituem, reconstituem ou desconstituem relações sociais (VILANOVA, 2003).

Não há condição de se pensar a Ciência do Direito sem simultaneamente pensar o próprio Direito. Assim, "toda e qualquer metodologia do Direito se funda numa Teoria do Direito, ou quando menos a implica" (LARENZ, 1997, p. xxii).

Neste sentido, afirma Vilanova (2003, p. 413) que a Ciência do Direito é a autoconsciência, em termos de conceitos, do direito vigente: ao mesmo tempo, o direito vigente incorpora a ciência de si mesmo, autocompondo-se num processo dialético intérmino, sem repouso, entre os dois pólos: a experiência jurídica e a teoria dessa experiência.

Conforme muito bem colocado pelo jusfilósofo pernambucano, a Ciência do Direito também está diretamente ligada à aplicação do Direito, ou, como ele mesmo diz: "o jurista, no sentido mais abrangente, é o ponto de intersecção da teoria e da prática, da ciência e da experiência: seu conhecimento não é desinteressado: é-o com vistas à aplicabilidade do que é norma" (VILANOVA, 2003, p. 414).

Neste ínterim, é muito importante frisar que se o Direito influencia a metodologia da Ciência do Direito, então esta tem por vocação a retroversão sobre seu objeto, condicionando-o. Portanto, o discurso judicial está permeado de concepções científicas que ingressam de maneira obrigatória nas decisões proferidas pelos tribunais.

A posição epistemológica tomada pelo aplicador do Direito necessariamente condicionará a decisão sobre qualquer caso que necessita de uma solução. Não há como se falar em decisão judicial sem abordar incansavelmente os paradigmas que permeiam o meio jurídico-acadêmico. É somente através da Ciência do Direito, cultivada nestes meios acadêmicos, que o intérprete terá subsídios que instrumentalizarão a sua argumentação. Tem-se, assim, a questão epistemológica da decidibilidade (FERRAZ JUNIOR, 1980). A adoção de uma concepção positivista do Direito, por exemplo, trará uma decisão distinta daquele que é adepto de uma concepção crítica ou não positivista do Direito1 .

2 A Teoria da Estatalidade do Direito

Ainda dentro de uma abordagem que privilegia uma visão epistemológica do Direito, é de fundamental importância destacar que o próprio Direito estatal é uma construção científica. Fruto de uma visão eminentemente moderna de mundo2 , o Estado moderno vem tomar para si o que se entende por Direito. Tudo isto para conseguir uma certeza nas relações sociais tal como a natureza possui sua "certeza".

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A tese da estatalidade do Direito, defendida fundamentalmente pelo positivismo jurídico, faz com que o sujeito, que tem por finalidade o conhecimento do fenômeno jurídico, se volte inteiramente para as normas emanadas por um órgão competente que figura dentro dos limites do Estado moderno, isto é, somente serão consideradas normas jurídicas aquelas que forem produzidas por uma fonte credenciada pelo ordenamento jurídico estatal.

A teoria positivista buscará, portanto, demarcar a norma jurídica com características próprias, que a distinguirá das demais prescrições existentes nas diversas ordens normativas as quais têm por objetivo a regulamentação da conduta humana. Esta diferenciação se faz necessária a partir do momento em que o positivismo jurídico quebra com a tradição que considerava o Direito como expressão do justo, proposta pelo Jusnaturalismo.

Na adoção dos códigos produzidos pelo recém fundado Estado moderno, no século XIX, ocorre a positivação do chamado Direito Racional proposto pelos jusnaturalistas. Na época de sua positivação, os preceitos jurídicos jusracionais codificados eram considerados suficientes e necessários para reger com extrema competência a sociedade e seus possíveis conflitos.

Todavia, com o envelhecimento dos códigos e com a imprescindível evolução da vida social, as normas positivadas no passado começaram a se tornar obsoletas para a solução dos conflitos que surgiam de maneira inédita na sociedade. Além disto, estas normas, as quais tinham em seu favor o fato de serem consideradas as autênticas representantes dos valores fundantes da sociedade, ao se depararem com situações que não poderiam ser solucionadas, não eram mais consideradas como os padrões éticos por excelência. A pretensão dos legalistas em ver no Direito positivado dos códigos a autêntica manifestação da racionalidade humana detentora da instrumentalização do valor justiça nas relações sociais se tornou, então, vazia.

2. 1 O Direito Moderno

Os positivistas jurídicos, em decorrência da inadequação entre o que estava prescrito nos códigos e os ideais de justiça, começaram a adotar a tese da necesaria entre derecho y moral, entre aquello que ordena el derecho y aquello que exige la moral o entre el derecho que es y el derecho que debe ser" (ALEXY, 1997, p.13). O conceito de Direito passa a ser visto como uma categoria puramente formal, em que se prescinde de toda análise de conteúdo, pois, como afirma Vilanova (2003, p.50), "para conceptuar de um modo universal o direito, há que se deixar em suspenso a direção para o valor, inerente ao direito".

Ilustra bem esta tese da separação o que coloca Diniz (2003, p. 377) em seu Compêndio de Introdução à Ciência do Direito:

É jurídica tanto a norma justa como a injusta, a moral, a imoral ou a amoral, pois o lesado pela violação de qualquer uma poderá exigir, por meios dos órgãos competentes, o seu cumprimento ou a reparação do mal sofrido; ele está autorizado a fazê-lo. P. ex.: é jurídica a norma que não reconheça a liberdade de todos, permitindo a escravidão, mas é injusta, pelo menos para nosso sentimento e para o de muitos contemporâneos do regime escravista. As normas jurídicas, postas pelo legislador, juiz etc., podem ser criticadas, mas todos devem agir de conformidade com elas, obedecendo-as por mais iníquas que sejam.

Esta distinção que se dá entre lei positiva e valores éticos é algo que sempre transpassou a história do Direito. Um dos exemplos mais citados pelos estudiosos do Direito é a tragédia grega de Antígona de Sófocles (496-406 a.C.) (2003). Antígona é filha incestuosa de Édipo com sua própria mãe Jocasta, e irmã de Ismênia, Polinices e Etéocles. O rei Édipo foi expulso de sua cidade Tebas por seus dois filhos, Polinices e Etéocles, que acordaram exercer o poder a cada ano de forma alternada, começando por Etéocles. Passado o primeiro ano no poder de Tebas, Etéocles se recusa a cumprir o combinado com seu irmão Polinices que, assim, buscou apoio no reino de Árgos para tomar o trono de seu irmão. Neste combate pelo comando de Tebas, os dois irmãos, Polinices e Etéocles, perecem. Creonte, irmão de Jocasta, é quem fica com o trono. Enterrou Etéocles com honras de herói. E, considerando Polinices traidor e inimigo de Tebas, Creonte promulga um decreto...

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