O monismo de primazia internacional: Aproposta de Alfred Verdross para a relação entre direito internacional e direito estatal

AutorBeatrice Guimarães Nóbrega
CargoProfessora de Direito Internacional Público da Faculdade Cenecista de Joinville/SC – FCJ. Mestre em Direito – área de concentração Relações Internacionais – pela Universidade Federal de Santa Catarina [UFSC].
Páginas41-57

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Introdução

As discussões em torno do tema “relação entre direito internacional e direito estatal”, seja por seu aspecto teórico, seja por seu aspecto prático, concorrem de modo significativo para a construção do conhecimento jurídico. Não obstante a relevância de sua aplicabilidade prática, a riqueza de sua argumentação teórica devese pelo fato do estudo de tal tema exigir a pré-definição de conceitos como “direito”, “Estado”, “direito interno”2 e “direito internacional”. Conseqüentemente, das diversas concepções destes conceitos resultaram diferentes construções jurídicas acerca da relação entre direito internacional e direito interno, dentre as quais se encontram a Teoria Monista e a Teoria Dualista.

Se, por um lado, o direito compreendido como sistema separado de normas jurídicas, cujas fontes e objetos diferenciam-se, conduz a uma leitura dualista de tal relação, por outro o direito entendido como um sistema unitário de normas jurídicas, cujas fontes e objetos identificam-se, leva a uma leitura monista da relação em matéria. Contudo, dependendo da eleição da norma fundamental [die Grundnorm]Page 42desse sistema unitário, duas podem ser as variações desta leitura monista, qual seja, de primazia do direito interno ou de primazia do direito internacional.

O presente escrito, no entanto, discorrerá apenas sobre o enunciado da Teoria Monista de primazia do direito internacional, proposta pelo jurista austríaco Alfred Verdross [1890-1980].3 Para tanto, se faz necessário perpassar por algumas concepções de Verdross expostas em sua obra “Direito Internacional Público” [das Völkerrecht], de 1934. Por isso, no primeiro momento, este trabalho apresentará, brevemente, a definição de Verdross de conceitos como “direito”, “Estado”, “direito interno” e “direito internacional”. Após tais pré-definições será feita a abordagem do enunciado da teoria monista de primazia internacional e, por fim, serão apresentadas algumas considerações finais sobre a proposta de Verdross.

1 Da concepção de direito

Verdross parte da percepção de que a natureza humana não corresponde a um ser neutro. Por sua vez, esta orientaria o homem a realizar determinados fins, sendo que em primeiro lugar está o fim de “o homem viver em sociedade”. Logo, o homem é compreendido e destacado, por Verdross, como um ser social, autônomo e auto-responsável.4 No entanto, uma sociedade somente subsistirá se os seus respectivos membros estiverem obrigados entre si, de modo a respeitarem reciprocamente suas vidas e seus bens. Isso significa, para Verdross, que uma ordem deve ser estabelecida no seio da sociedade a fim de evitar, desse modo, possíveis conflitos entre seus membros, bem como, conceder direitos a esses.5 Quer isso dizer que uma ordem positivada restaria por estabelecida.

Entretanto, Verdross adverte que tal organização humana demonstra que precedem ao direito positivo não somente os homens e suas relações, mas também valores determinados pela natureza comum. Adolfo Miaja de la Muela ressalta que para o jurista austríaco a natureza em seu sentido amplo compreenderia, além das ciências naturais, a cultura, sendo o direito natural uma manifestação desta.6 Por isso, aqueles valores determinados pela natureza comum seriam identificados com os princípios diretivos.7 Contudo, tais princípios diretivos não poderiam ser configurados de modo arbitrário, mas deveriam atingir uma ordem de paz: o que porPage 43sua vez expressa “[...] a idéia de direito com o direito natural”,8 ou seja, expressaria a relação entre a “idéia de direito” [die Rechtsidee] e o “direito natural”. Este, o direito natural, corresponderia, desse modo, ao “meio” para a realização da finalidade do direito, pois neste estariam aqueles princípios. Nessa perspectiva, Fausto de Quadros comenta que para o jurista austríaco todo o direito positivo seria fundamentado no valor absoluto da Justiça, mesmo com “[...] a relatividade da sua apreensão pelo Homem.” Por isso, Fausto destaca que Verdross para superar essa relatividade da percepção do homem, descobre as regras do direito natural nos “princípios gerais de direito”, os quais resultariam “[...] necessariamente da natureza do Homem ou dos grupos humanos, e cuja compreensão, portanto, não apresenta a relatividade a que conduzia a pureza do jusnaturalismo dos valores.”9

Enfim, o direito, segundo Verdross, pode ser concebido como um sistema de normas jurídicas que possui um fundamento último, a Grundnorm. No entanto, esse direito positivado fundamentado está tanto na sociedade [subsolo sociológico], quanto na natureza social e teleológica do homem [fundamento normativo]. Logo, o direito corresponde a um fim que consiste na chamada “idéia de direito”, sendo que a essência dessa idéia é a “ordem de paz”. O direito, então, é o meio pelo qual o homem pode alcançar e desenvolver a sua finalidade de “ser social”. Uma vez que o direito possibilita um pacífico convívio social. Por conseguinte, Verdross ressalta que se a “idéia de direito” indica o fim ao qual toda sociedade deve tender [uma ordem de paz], os meios para alcance de tal finalidade encontram-se no direito natural. Desse modo, é no direito natural [Grundnorm] que estão os princípios que limitam e condicionam a obrigatoriedade das normas jurídicas que constituem o ordenamento jurídico.

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2 Da concepção de Estado

A concepção de Estado, segundo Verdross, se apóia em referenciais presentes no direito internacional, a ponto de Verdross alegar a anterioridade da ordem jurídica internacional à própria formação do Estado, ou seja, do Estado soberano.10 Para Verdross, então, “Os Estados, cuja existência pressupõe o D.I.P., se chamam Estados independentes e soberanos.”11 E, ainda que discípulo de Kelsen, Verdross também rompe com a identificação entre Direito e Estado.12

Por partir de uma leitura internacionalista, questões como “soberania” e “independência” são condicionantes para Verdross, ao discorrer este sobre o Estado. Desse modo, a soberania estatal, segundo Verdross, pode ser considerada sobre dois aspectos: primeiro sobre o aspecto interno, correspondendo a um governo próprio; e, na seqüência, por um aspecto externo, correspondendo à independência.13 No entanto, o autor adverte que tal concepção de soberania estatal é relativizada, sem que para tanto sejam comprometidos seus aspectos, interno e externo. Conseqüentemente, uma concepção de soberania absoluta seria considerada falha, ao enunciar que o direito internacional positivo resultaria da vontade unilateral do Estado, de uma autolimitação do mesmo.14 Uma vez que o direito internacional positivo é produto da comunidade dos Estados e não de um único Estado, isoladamente. Por outro lado, a concepção de soberania relativa iria ao encontro da existência de um direito internacional, justamente porque seria próprio do direito internacional vincular os Estados independentes fazendo com que se constituísse uma comunidade jurídica, ou seja, uma comunidade de Estados.15

A concepção de soberania estatal relativizada não prejudicaria os seus respectivos aspectos. Desse modo, Verdross entende que noções como “soberania absoluta” e “não-limitação da autonomia” do Estado corresponderiam a postulados da política do direito, não correspondendo, assim, a postulados do conhecimento jurídico, já que tais noções tenderiam tanto a eliminar uma realidade sociológicaPage 45determinada, quanto a influir sobre a evolução da realidade social.16 Enquanto que, pelo direito internacional positivo, seria possível a relativização da soberania estatal, sem comprometê-la sobre seu aspecto interno e externo.17 Ademais, Verdross ainda menciona que, pela prática internacional, um determinado Estado se considera soberano em duas situações: a) enquanto não convertido em membro de uma federação; b) ou enquanto não seja dissolvido no seio de um outro Estado.18 Tal prática internacional, segundo Verdross, iria ao encontro da assertiva de que a eliminação da soberania estatal corresponderia a um postulado da política do direito, não correspondendo a um postulado do conhecimento jurídico. Enfim, Verdross ressalta que ao conhecimento jurídico compete o fundamento jurídico-positivo da soberania. Por outro lado, a manutenção e eliminação da soberania competem à política do direito.19

No que concerne à independência estatal, o autor a destaca como um dos direitos fundamentais dos Estados, uma vez que a independência expressaria o respeito recíproco entre os Estados. Respeito recíproco tanto às suas respectivas políticas, interna e exterior, quanto às suas respectivas ordens internas.20 Essa independência política estatal significaria a sua autonomia concernente aos seus assuntos internos e externos, dentro dos limites do direito internacional. Logo, segundo Verdross, a independência política dos Estados ocorre no sentido de um para com os outros, e não ocorre no sentido de uma autonomia em relação às normas jurídicas do direito internacional.21 Isso implicaria, conforme explica Francesco Capotorti, a liberdade de cada Estado para estabelecer sua ordem constitucional, regular a forma de governo e o regime constitucional de seu território, não excluindo a possível limitação de certos aspectos de tal liberdade pelas obrigações que o Estado assume no plano internacional.22 Os Estados deveriam observar o direitoPage 46internacional na realização de ambas esferas políticas, a interna e a externa. Por conseguinte, dessa independência política dos Estados decorreria o princípio da igualdade dos Estados. Isso significa que nenhum Estado soberano estaria subordinado a outro Estado.23

Nesse contexto, Verdross, ao analisar a comunidade dos Estados, a caracteriza pelo fato dos membros não se encontrarem uns ao lado...

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