Movimentos de massa e movimentos sociais: aspectos psicopolíticos das ações coletivas

AutorMarco Aurélio Máximo Prado
Páginas48-65

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O debate

Abordar* as formas de inserção no espaço público e as (in)diferenciações identitárias sugeridas na complexidade das sociedades contemporâneas é tarefa árdua. Assim, neste texto, limita-se o debate às classificações que têm servido como divisores de água na configuração e definição dos fenômenos coletivos das massas e dos movimentos sociais como formas e estratégias de inserção, ocupação e constituição dos espaços públicos contemporâneos.

Vale dizer que o objetivo principal é interpelar as categorias analíticas que foram (e têm sido) utilizadas para compreensão das identidades coletivas no espaço público, ou seja, a caracterização dos movimentos de massa e dos movimentos sociais. Desse modo, a partir de dois conceitos nodais – o político e a identidade coletiva – apresentamse algumas reflexões, no intuito de problematizar o campo de tensão presente na compreensão dos fenômenos da ação coletiva no campo do político na contemporaneidade, o que traz como conseqüência obrigatória pensar sobre as possibilidades de reinvenção e sobrevivência da democracia nos dias atuais.

Enfrenta-se, portanto, a temática a partir de dois pontos que se consideram premissas para entrar com alguma precisão no debate sobre a diferenciação e a indiferenciação identitária na configuração do espaço público nas sociedades atuais. Essas duas premissas – a da expansão ou redimensionamento do campo do político e a da constituição dinâmica e psicossocial das identidades coletivas – são importantes, pois permitirão uma abordagem crítica à tradicional divisão das formas de inserção no espaço público entre os chamados fenômenos de massa e os movimentos sociais.

Para cumprir tal tarefa, a reflexão está estruturada em dois momentos. O primeiro é mediante o qual se aponta, a partir de autores localizados nas teorias pluralistas de democracia, para a emergência doPage 49político como espaço de antagonização social e a questão da identidade coletiva como construção dinâmica, negociada e processual de práticas coletivas, significados, formas de pertença, compartilhamento de valores, crenças e lógicas de reciprocidades. Num segundo momento, utilizam-se essas premissas para debater a insuficiência dos parâmetros tradicionais de compreensão dos antagonismos sociais, como a idéia de arcaico e pré-político para os movimentos de massa e a noção de emancipação política para os movimentos sociais e, considerando-se esse debate, discute-se se é possível, nos dia de hoje, pensar nessas formas de inserção no espaço público, sem tomar como base os divisores e marcadores até então utilizados, mas a partir deles pensar a lógica da diferenciação e indiferenciação identitária na configuração, ocupação e definição do espaço público, tendo-se como novo definidor a criação de antagonismos políticos na lógica dos reconhecimentos sociais das relações intergrupais aliados à redistribuição social.

Com essa tarefa, corrobora-se a conclusão com diversos autores contemporâneos, que apontam para a importância do estudo das formas coletivas de antagonismos políticos, a partir de análise psicossocial da construção das identidades políticas.

A expansão do político e a dinâmica das formações identitárias coletivas

A primeira premissa anunciada diz respeito a uma consideração sobre a expansão ou o redimensionamento do espaço do político nas sociedades atuais. Em verdade, propõe-se essa consideração, tomandose como referência principal o trabalho da filósofa política Chantal Mouffe (1993; 1999; 2000). Assim, tenta-se redimensionar e conceituar o que se intitula como sendo “o” político. Isso se torna importante, já que é a partir de uma concepção menos liberal de democracia, não individualizante dos fenômenos políticos e não racionalista de sujeito político (MOUFFE, 1999) que se tratarão as formações identitárias e as formas de inserção no espaço público, entendendo que o espaço público não somente se configura a partir da dimensão da política, do institucionalizado, do regulatório, da organização institucional da política, mas também do político, do ainda “laboratorial”, do espaço de onde antagonismos emergem, do espaço onde a emergência, a interação e a participação social dos atores coletivos são primordiais.

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A própria emergência de novos antagonismos sociais, ou seja, antagonismos que não estavam e não estão calçados sobre relações de opressão já nomeadas, resulta, por exemplo, da emergência de uma diversidade de sujeitos coletivos (SANTOS e NUNES, 2003), que tem redefinido as fronteiras do político, a partir de questionamentos da legitimidade das instituições políticas ocidentais e do reconhecimento dos conflitos antagonísticos em esferas da vida social, ainda não democratizadas. Logicamente, esses dois fatores determinaram a emergência e a interação de sujeitos coletivos muito mais plurais do que aqueles escolhidos pela excelência da determinação de um conflito único e central, como queriam algumas análises ortodoxas do capitalismo (SANTOS e NUNES, 2003).

Essa reconsideração do campo do político não implica, de forma alguma, deixar de reconhecer o político como esfera institucional diretamente vinculada ao Estado, à sociedade civil e ao mercado, como esfera organizativa e regulatória da ação pública dos atores e das instituições sociais. No entanto, reduzi-lo a sua institucionalidade seria manter uma miopia que não possibilitou considerar o pluralismo e a diversidade das manifestações políticas em suas variadas formas, na configuração do espaço público moderno (SANTOS e NUNES, 2003). Ressalta-se isso, sobretudo, se se considerar que essa miopia favoreceu muito uma visão liberal de política e de democracia 2 .

Segundo Mouffe (1993), o desafio é articular, no espaço político, tanto a lógica da identidade como a lógica da diferença, de tal maneira que se garanta a sobrevivência da tensão entre elas. Nas palavras da autora:

[...] é esta tensão, de fato, que também aparece com a tensão entre nossas identidades como indivíduos e como cidadãos ou entre os princípios da liberdade e igualdade, que constituem a melhor garantia de que o projeto da democracia moderna está vivo e habitado pelo pluralismo. O desejo de resolver esta tensão poderá favorecer somente a eliminação do político e a destruição da democracia (Idem, p.133).

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Desse modo, o que se busca com um redimensionamento do campo do político é enfrentar questões como a que Sousa e Nunes (2003,
p.25) levantam: “Como é possível, ao mesmo tempo, exigir que seja reconhecida a diferença, tal como ela se constituiu através da história, e exigir que os ‘outros’ nos olhem como iguais e reconheçam em nós os mesmos direitos de que são titulares?”

Mouffe (1993; 1995; 1999) tem desenvolvido uma concepção do político criticamente baseada na abordagem amigo-adversário 3 . Há preocupação com uma concepção que não seja essencialista e represente a pluralidade e a diversidade das relações antagônicas e dos sujeitos políticos, nas sociedades contemporâneas. Dessa forma, a autora busca retomar as críticas de Schmitt (1995) ao pensamento liberal, porém, refuta o que em Schmitt parece ser, de fato, a principal hostilidade entre os grupos sociais, a qual não tem limites para sua expressão. Assim, Mouffe (1999) afirma que pensar com Schmitt também é pensar contra ele, já que, para a filósofa, a relação amigo-inimigo, em sua denominação amigo-adversário, estaria sempre limitada pelos valores de liberdade e da igualdade.

Nesse sentido, o político pode ser pensado como espaço onde conflitos e antagonismos buscam realizar-se, havendo como conseqüência a impossibilidade do consenso, assim se considerando que o político “[...] é uma contraditória combinação de princípios inconciliáveis” (MOUFFE, 1993, p.133). Aqui tanto a lógica da identidade como a da diferença são fundamentais. Pensar nesses termos é, em verdade, reconhecer o caráter antagônico do político, ou seja, reconhecer que o político se estrutura para além da lógica da contradição 4 .

A relação antagônica não apresenta como possibilidade final o consenso, pois, como ele somente poderá se dar ao excluir um ELES da constituição de um NÓS, o antagonismo é permanente, alimenta, dessa maneira, uma tensão necessária para o espaço democrático ePage 52evita assim um sujeito coletivo totalizado (NÓS), fechado sobre si mesmo, e um constitutivo externo (ELES), como impossibilitado de constituir-se como um possível NÓS. A idéia central é entender que a possibilidade de formar uma identidade coletiva (NÓS) está em sua relação permanente com um constitutivo externo (ELES), que, como possibilidade, também é a impossibilidade da totalização dessa identidade sobre si mesma. Logo, os processos de articulação, interação e participação social são elementos constantes da instalação das identidades coletivas e políticas.

A negação dessas fronteiras seria, para Mouffe (1993), um dos maiores perigos para o aprofundamento dos valores democráticos sobre a vida social, já que negá-las seria afiliar-se a uma concepção de democracia – a liberal –, na qual a ilusão do consenso razoável e racional parece não excluir ninguém, mas, como se tem visto, exclui tão-somente pela noção de racionalidade política “superior” ou “emancipatória”. “A exclusão do diferente, portanto, é baseada na...

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