Mulheres Rurais, Movimento Social e Participação: reflexões a partir da Marcha das Margaridas

AutorVileniaVenancio Porto Aguiar
CargoDoutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas
Páginas261-295
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15nesp1p261
261261 – 295
Mulheres Rurais, Movimento Social
e Participação: ref‌lexões a partir da
Marcha das Margaridas1
Vilenia Venancio Porto Aguiar2
Resumo
O artigo traz algumas considerações sobre a atuação dos movimentos de mulheres rurais, to-
mando como objeto de ref‌lexão a Marcha das Margaridas, uma ação coletiva protagonizada por
mulheres do campo e da f‌loresta, que ocorre a cada quatro anos em Brasília. Considerando-a
como parte do processo histórico de organização das mulheres trabalhadoras rurais, procuro
resgatar aqui a emergência dos movimentos de mulheres rurais situados no contexto da abertura
democrática da década de 1980, e sua atuação em anos recentes, no decorrer dos quais posiciono
a Marcha das Margaridas. O artigo mostra que, apresentando uma transformação tanto na sua
estrutura e dinâmica organizativa quanto no seu aparecimento público, a Marcha das Margaridas,
atuando em rede, tem produzido visibilidade às mulheres do campo e da f‌loresta, tem criado
impacto na esfera pública e obtido conquistas para a cidadania, mostrando- se capaz de dialogar
com o Estado e incidir sobre as políticas públicas.
Palavras-chave: Mulheres rurais. Participação. Movimento de mulheres. Marcha das Margaridas.
1 Introdução
A participação política e as intervenções dos movimentos de mulheres
rurais no espaço público, em geral, vêm contribuindo signicativamente para
o seu reconhecimento como sujeitos de direito. Tal reconhecimento vem se
expressando, particularmente nos últimos anos, na elaboração de políticas pú-
blicas que respondem às suas demandas e na construção de espaços institu-
cionais empenhados em garanti-las (SILIPRANDI; CINTRÃO, 2015). Isso
demonstra que a sua atuação, por meio de suas organizações e movimentos,
tem conseguido não apenas dar-lhe visibilidade, mas, de alguma forma, “[...]
1 Parte das ref‌lexões que trago aqui é resultado da minha tese de doutorado intitulada: Somos todas margaridas:
um estudo sobre o processo de constituição das mulheres do campo e da f‌loresta como sujeito político, sendo,
portanto, integrada à sua composição.
2 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
E-mail: vilenia@f‌loripa.com.br.
Mulheres rurais, movimento social e participação: ref‌lexões a partir da Marcha das Margaridas | VileniaVenancio Porto Aguiar
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incidir sobre a agenda pública” e “[...] adquirir legitimidade junto à sociedade
e ao Estado” (SILIPRANDI; CINTRÃO, 2015, p. 571), que assim vem bus-
cando incorporar algumas de suas temáticas nos espaços institucionais.
Tal atuação assumiu várias formas ao longo da história dos movimentos
de mulheres rurais, de acordo com o contexto e as dinâmicas sociopolíticas e
econômicas com as quais se depararam, evidenciando diferentes congurações
e tendências assumidas por eles ao longo da sua história, das quais derivaram
diferentes formas organizadas de ação coletiva, envolvendo ocupações, pres-
sões, negociações e alianças. Nesse processo, as mulheres rurais, na sua diver-
sidade, foram se constituindo e se armando como sujeitos políticos, assim
como foram aprendendo a (re)inventar formas de fazer política. É sobre uma
dessas formas que trata o texto: a Marcha das Margaridas, uma ação coletiva
protagonizada por mulheres do campo e da oresta, como se nomeiam, que
ocorre a cada quatro anos na capital federal.
O artigo constitui-se em duas partes: na primeira, esboço alguns aspectos
que nos permitam compreender por que e em que momento as mulheres
rurais passaram a se organizar em movimentos; na segunda parte, procuro
explorar o que esses movimentos trazem de novo em anos recentes, tomando a
Marcha das Margaridas e as potencialidades de sua ação política como objeto
de reexão.
2 Mulheres rurais em movimento
Foi no contexto de abertura democrática da década de 1980 que os mo-
vimentos de mulheres ganharam força e signicativa expressão nos processos
de luta no campo, apesar de a sua participação nessas lutas não ser um fato
novo. Articulados a outros segmentos sociais que reivindicavam, ainda no m
do regime militar, espaços de expressão política, esses movimentos se inseriam
no que comumente passou a ser denominado de “novos movimentos sociais”
que emergiram, canalizando os interesses de segmentos da população.
No processo de organização das mulheres do campo, destacam-se a agên-
cia da Igreja, por intermédio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e
pastorais; a emergência do “novo sindicalismo” e das “oposições sindicais”, e a
atuação do movimento feminista. Por conseguinte, farei uma breve digressão
de como a presença desses atores repercutiu nesse processo. Realizar “breves
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 15 - Edição Especial - 2016
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digressões” sempre traz o risco de engessar momentos históricos ou situar as
instituições como algo homogêneo e sem conitos internos ou tensões. Entre-
tanto, quero ressaltar que todos os movimentos aqui mencionados se inserem
em processos sociais e políticos que se constituem como um feixe complexo
de experiências, relações e atividades, com pressões e limites especícos e mu-
táveis, e que, manifestando formas de fazer política, existiram como elementos
signicativos da sociedade (WILLIAMS, 1979, p. 115).
2.1 As CEBs, as pastorais e a participação das mulheres
A Igreja Popular, representada pelas Comunidades Eclesiais de Base e
pelo trabalho pastoral3, constituiu a base da mobilização das mulheres ru-
rais na abertura política e na transição democrática. As CEBs e as pastorais
ofereceram às mulheres a experiência formativa que as levou a questionar a
sua condição social (DEERE, 2004), levando ao surgimento dos primeiros
grupos organizados de mulheres4. Tal experiência formou a base para a pos-
terior emergência de vários movimentos de mulheres rurais em todo o País5.
Portanto, a mobilização das mulheres rurais não se formou na prática sindical,
mas foi anterior a ela (CAPPELLIN, 2009).
O surgimento das CEBs e também o desenvolvimento de grupos pasto-
rais diversos, comprometidos com as causas políticas (MACHADO; MARIZ,
1997), foram inspirados na Teologia da Libertação, que, buscando defender
os interesses sociais e econômicos dos socialmente desprivilegiados e material-
mente carentes, proclamou a “opção preferencial pelos pobres”. Motivados
por essa corrente teológica e sua base teórica, diversos grupos religiosos pas-
saram a desenvolver trabalhos junto aos trabalhadores e trabalhadoras rurais.
As CEBs, por sua vez, como espaços de organização, propiciaram a rápida
3 Com destaque para o trabalho da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que organizou grupos de mulheres em
torno da luta pela terra, além de ter desempenhado um importante papel no surgimento do Movimento dos
Sem-Terra (MST) (DEERE, 2004).
4 Inclusive, a criação de Clubes de Mães foi impulsionada pelas CEBs, datando dessa época o surgimento de
muitos deles em todo o País. Onde os Clubes de Mães já existiam, as CEBs incentivaram o engajamento das
mulheres.
5 Embora em número menor, havia, também, segundo Cappellin (2009, p. 646), grupos de matriz laica, forma-
dos a partir das mobilizações de resistência às expulsões dos moradores das fazendas, nos quais as mulheres,
assim como nos grupos de matriz religiosa, tomavam a iniciativa de promover as reuniões, organizá-las e
dirigi-las.

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