O multiculturalismo nos limites da universalização dos direitos humanos e a emergência de um projeto de solidariedade

AutorPaulo Ferrareze Filho
Páginas95-102

Paulo Ferrareze Filho. Mestrando em Direito pela UNISINOS. Graduado em Ciências Jurídicas e Socias pela UPF. Intercâmbio na Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de Compostela na Espanha – USC. Atualmente é advogado.

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¿Hay que ser realistas? - No, mis ojos han tenido ocasión de ver ya mucho…y nunca vieron a un realista hacer nada relevante. Los realistas nunca transformarán la realidad porque la aceptan, porque renuncian a intentar cambiarla, porque promueven el sinremedismo y la indiferencia en lugar de la tensión humana, de la pasión, de la compasión.

Miguel de Cervantes, Don Quijote de la Mancha

1 Considerações Iniciais

Depois de 60 anos, a Carta dos Direitos Humanos e sua descrição de que todos nascem livres em direitos e dignidade, de que todos têm igual proteção da lei e de que ninguém pode ser submetido à tortura nem a tratamento cruel, desumano e degradante, parece que ainda é dos maiores obstáculos e nortes que a humanidade deve superar e perseguir.

Isso porque o ideal proposto pela Carta - ainda que inegável seja seu rastro - esbarra, ainda hoje, nas tramas que envolvem sua efetividade real como cansativamente a doutrina jurídica e sociológica reiteradamente constata. Além dessa constatação quase óbvia, tanto internamente pelas inconstâncias sociais brasileiras quanto no plano global pelo massacre abissal que ainda é a divisão geopolítica e econômica entre norte e sul, outra, que também nada tem de recente no debate jurídico em torno dos direitos humanos, é a possibilidade de universalização, senão de todos, de um mínimo essencial de direitos que seja capaz de formatar uma base de características e notas humanas comuns e imprescindíveis a qualquer ser humano. Essa é a embrionária ideia que pretende tornar os direitos humanos universalizados.

Ao mesmo tempo em que a globalização parece promover muito mais aproximações que distanciamentos com sua possibilidade de trocas e acessos que mais tendem a homogeneizar que manter características próprias e locais, ainda são crescentes, de forma paradoxal, conflitos étnicos e movimentos separatistas que, amarrados inconscientemente pela multiculturalidade, parecem negar o intento massificador da globalização na luta pela preservação de algumas particularidades culturais.1

Essa é uma consideração de relevo em qualquer estudo que pretenda tratar da tentativa de universalização dos direitos humanos. Afinal, a coexistência de sociedades plurais é, de fato, um obstáculo ao histórico problema de efetivação dos direitos humanos? Ou ainda: a homogeneização cultural é um pressuposto fundamental na construção de um direito comum dos povos?2 Ou, ao contrário, essa mera tentativa já afronta os direitos humanos pela simples negação das especificidades culturais? E para além desses questionamentos primeiros: quais são as propostas mais viáveis para tornar práticos e factíveis esse conjunto de direitos mínimos que são essenciais a todos os homens?

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Essas indagações, por suas complexidades, encontram diferentes respostas, ou melhor, diferentes caminhos. Se por um lado nas correntes relativistas - que consideram o multiculturalismo a coexistência de diferentes culturas na sociedade humana - o projeto de construção de valores comuns é inviabilizado em razão da impossibilidade de generalizações e da manutenção de pontos de contato entre as culturas pela consideração de que a existência humana pressupõe diferentes valores, hábitos e práticas sociais (vertente antropológica); por outro, é possível considerar os direitos humanos como um patamar metajurídico em que seja possível definir valores comuns aos seres humanos preservando as múltiplas diversidades culturais entre os povos, para, a partir desses acordos valorativos, construir um direito comum.3

Esse breve artigo pretende tecer algumas críticas à proposta de universalização dos direitos humanos que busca encontrar similaridades entre as culturas e entre os próprios seres humanos na tentativa de construção de uma categoria superior de direitos que possa se estender a todos os homens, independentemente da cultura em que estejam inseridos. Ao mesmo tempo, buscar-se-á demonstrar a emergência de um projeto de solidariedade e da necessidade da tomada de decisões de ordem prática que sejam capazes de viabilizar, senão universalmente os direitos humanos - pela altaneira missão que esse projeto impõe -, o início, desde as mais remotas células sociais, de um movimento solidário de transformação.

2 O Multiculturalismo e o Parco Projeto Universalista

A multiplicidade de culturas é, antes de qualquer reflexão sociológica, uma constatação. Um acontecimento perene da humanidade que apenas ganhou luzes e destaques justamente pela vitrine da globalização informativa.

O multiculturalismo é também um exercício de alteridade4. Uma experiência que deve ser ora de reconhecimento, ora de estranheza, mas sempre de aceitação. Essa forma de olhar o outro, de compreender e aceitar características culturais específicas em busca de uma igualdade que ultrapasse o plano formal é essencial e deve estar presente na construção de um projeto ideal de efetivação dos direitos humanos. O multiculturalismo ganhou força a partir dos anos de 1960 com a instauração de debates acerca de temas como a tolerância, a solidariedade e o pluralismo. Essas preocupações se refletiram no âmbito dos direitos humanos, por meio do chamado processo de especificação dos sujeitos, que deu origem no âmbito da ONU a inúmeros documentos de proteção de minorias como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial de 1965. Mesmo diante da resistência que a globalização impunha ao fenômeno da pluralidade de culturas, foi com referências teóricas como a de Boaventura de Sousa Santos5, ao propor uma polarização entre a globalização hegemônica e a globalização contra-hegemônica por considerar que o global ocorre localmente e que o local também acontece no todo, que a ideia se manteve. Podemos notar que esse aporte teórico sustenta a notável emancipação multicultural do discurso dos excluídos no plano global. O exemplo do 11 de setembro6 é reflexo disso, tanto pela exposição cultural acentuada em forma de tragédia, quanto pela necessidade de uma pauta de debate que possa envolver, simultaneamente, temas indissociáveis como política, economia e cultura. O multiculturalismo constitui-se, como quer o artigo primeiro da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, como um patrimônio comum da humanidade que se expande pelo já conhecido direito de autodeterminação dos povos da Carta de 1948.7

Já com Bobbio, o processo (ou a tentativa) de universalização dos direitos humanos era encontrado na afirmação de que eles “nascem como direitos naturais universais” e que se desenvolvem “como direitos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais”.8 Ora, mesmo uma análise superficial, deixa clara a brutal contradição no dizer do jurista italiano ao atrelar a plena realização dos direitos humanos ao simples fato de estarem positivados universalmente. Se, de fato, a universalização dos direitos humanos se dá pela reles existência de um documento formal adotado pela totalidade dos Estados soberanos do mundo - ou pelo menos a grande maioria deles -, então, qualquer discussão acerca de sua universalização desde a Carta de 1948 é absolutamente inócua e sem propósito. Ainda que se possa - e se deva - compreender que estava Bobbio imerso em outro contexto histórico, deve-se ter presente que, ainda hoje, o tema dos direitos humanos e de sua efetivação parece amarrado ao mero plano da positivação formal. Isso porque, se insiste - o que não é um (des)previlégio apenas dos direitos humanos - em um dogmatismo de cunho positivista que tem raízes na modernidade. Um positivismo que imagina pobremente a solução de todos os problemas mundanos na tentativa de apreender, em sua totalidade, a realidade nas suas escassas linhas afirmativas.

Por mais que essa evidência não seja, deveras, evidente, parece haver uma tentativa de manutenção do ideal estanque e dissociado da realidade que o positivismo nos legou. Assim não fosse, não teríamos incontáveis tratados, códigos e documentos prevendo e condenando situações que sequer emergem das páginas em que são escritas.

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Existe, porém, uma tentativa que se desprende dessa perspectiva positivista, buscando, para além das formalidades, uma simbiose entre a manutenção das diversidades culturais e o intento de revelar características ou valores comuns entre os seres humanos. Essa delimitação, com potencial capacidade de formatar um conteúdo substancial mínimo dos direitos humanos, seria, então, o ponto de partida para o projeto universalista.

Considerando a necessidade de integrar valores universais para a constituição de um direito que possa ter, pelo menos, um fundamento comum, o esforço se dá em identificar valores morais universais que possam ser encontrados em todas as sociedades plurais. Alguns desses valores, conforme aponta Vicente Barreto9, podem ser: “a identidade humana, a dignidade humana, o valor humano, a promoção do bem-estar humano e a igualdade”. Esses são considerados valores justamente porque são cultivados em todas as sociedades, ainda que sejam implementados de diferentes formas e por normas morais e jurídicas específicas e particulares; em contrapartida podem ser considerados morais pelo fato de que “estabelecem critérios mínimos em função dos quais os homens vivem e se relacionam uns com os outros; e são universais porque respondem a exigências de todos os seres humanos, independentes de cultura, nacionalidade ou religião”.

Por certo que essas contemporâneas formulações encontram apoio no elemento nuclear de...

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