Globalização e multiculturalismo:Aproximações e divergências naatualidade

AutorFlorisbal de Souza Del’Olmo
CargoMestre (UFSC) e Doutor em Direito (UFRGS). Professor dos Cursos de graduação em pósgraduação, Mestrado em Direito da URI, Santo Ângelo, RS. Professor convidado da UFAM, Manaus, AM, e da UFRGS.
Páginas49-66

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Introdução

Nesta primeira década do século XXI, evidenciam-se, sob matizes os mais diversos, a interdependência e a interligação de fatores, ciências e realidades. Temas antes vistos sem qualquer analogia podem agora merecer nova leitura, encontrando-Page 50se liames e confluências entre eles. Este estudo tem por objetivo buscar aproximações e divergências entre globalização e multiculturalismo, assuntos incorporados hoje na vida do estudioso das ciências jurídicas.

O problema consiste em perquirir ambos os temas, procurando resposta para essa indagação. O método seguirá reflexões sobre a globalização e o multiculturalismo.

1 Considerações gerais sobre o tema

Globalização é um termo que carrega, em si, alta carga de imprecisão conceitual, sendo usado para identificar aspectos diversos da vida social, como a universalização de padrões culturais, expansão e fortalecimento de instituições supranacionais e, especialmente, forte internacionalização dos processos econômicos.2 Em termos sucintos, Welber Barral define globalização como “o processo de internacionalização dos fatores produtivos, impulsionado pela revolução tecnológica e pela internacionalização de capitais”.3 Não se limita, contudo, meramente o fenômeno global às características econômicas, influindo inclusive nas decisões judiciais em pretórios brasileiros.

Alguns autores entendem que a globalização tem seus pródromos em épocas bem anteriores. Assim, para Mario Edgardo Rojas, que a confunde com ocidentalização, a globalização é o processo de expansão da Civilização Ocidental, iniciado com a Descoberta da América (1492) e com a primeira viagem de circunavegação ao redor do globo, empreendida por Fernando Magalhães e completada por Sebastião Elcano (1519-1522).4 Acentua, outrossim, Gilmar Antônio Bedin ser o fenômeno da globalização “muito mais o resultado de uma longa, lenta e quase que imperceptível evolução da sociedade moderna do que o fecho imediato e inexorável de um fato isolado, por mais relevante que seja”.5

O signo das transformações extrapola, na globalização, todas as fronteiras, ampliando-se e envolvendo os mais variados aspectos da vida moderna: do individual ao coletivo, do social ao político, do nacional ao supranacional.6 Vive-se uma épocaPage 51em que tudo é conhecido, “um mundo onde tudo pode virtualmente ser posto em contato com tudo, onde as distâncias são reduzidas, onde empresas podem implantarse por toda parte ou externalizar suas atividades”, como afirma Monique Canto- Sperber.7

Efetivamente se vivencia, como acentua Erik Jayme, fenômenos contraditórios, em que é possível, por um lado, facilmente libertar-se das amarras de uma existência limitada, através da velocidade, ubiqüidade e liberdade, já que não mais existe espaço para a comunicação. Dessa forma, os eventos de alegria e de tristeza, atualmente, unem as pessoas em um “sentimento global de solidariedade que era desconhecido das gerações anteriores. De outro lado, cada catástrofe, apesar de parecer bastante distante da esfera dos negócios de cada um, acaba, em realidade, a repercutir na vida privada de cada um. Experimentamos um sentimento de perda da segurança de uma existência protegida pelas instituições tradicionais, como o Estado e os juízes estatais”.8

Já a palavra multiculturalismo, conforme observado por Roberto Fernández, apresenta, em tese, conotação positiva: “refere-se à coexistência enriquecedora de diversos pontos de vista, interpretações, visões, atitudes, provenientes de diferentes bagagens culturais. O termo serve de etiqueta para uma posição intelectual aberta e flexível, baseada no respeito desta diversidade e na rejeição de todo preconceito ou hierarquia”.9 O autor, porém, analisa-o em uma significação diversa: “a tendência ao fechamento ou bloqueio cultural, a falta de vontade, ou capacidade, para transcender os limites de sistemas construídos, ignorando o que acontece além de seus muros, a potencial criação de um modelo humano incompleto, limitado, estreito e fundamentalmente pobre”.10

O multiculturalismo implica uma não-homogeneidade cultural e étnica e uma não-integração, defendendo uma visão diversificada das formas de vida na sociedade contemporânea. Busca preservar os valores próprios de cada parcela constituinte de uma região ou país, reconhecimento que não pode, contudo, significar qualquer forma nociva de isolamento desse grupo.

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2 A globalização e a transformação de culturas e de conceitos

A globalização não só revolucionou, nas três últimas décadas do século XX, a economia, como as relações políticas, sociais e culturais. Nessa esteira, pertinente a observação de Jayme, de que basta pensar-se na proteção do meio ambiente para se sentir quanto a globalização modificou a consciência de cada um: “existe um interesse global, por exemplo, de manter o clima da Terra ou de proteger a qualidade da água, interesses que importam à vida dos indivíduos”.11 Lembra Josef Thesing que o global, a par de ser um estado, é simultaneamente um desafio para a política, a economia, a ciência e a cultura, exigindo portanto uma ação ordenadora: “Lo global ciertamente también comprende la noción de una nueva sociedad mundial y un nuevo orden internacional”.12

A ampla maioria das forças produtivas básicas, como capital, tecnologia e divisão transnacional do trabalho, deixa de respeitar fronteiras geográficas, históricas e culturais, multiplicando suas formas de articulação e contradição. Para Octavio Ianni, esse é “um processo simultaneamente civilizatório, já que desafia, rompe, subordina, mutila, destrói ou recria outras formas sociais de vida e trabalho, compreendendo modos de ser, pensar, agir, sentir e imaginar”.13 Vivenciando a sociedade global, a época da eletrônica conta com os recursos da informática, que a tornam, ao mesmo tempo, visível e incógnita, presente e presumível, indiscutível e fugaz, real e imaginária, uma vez que articulada por emissões, ondas, mensagens e símbolos, redes e alianças que “tecem os lugares e as atividades, os campos e as cidades, as diferenças e as identidades, as nações e as nacionalidades”.14

A sociedade globalizada, que tem sido designada sociedade pós-moderna, pós-industrial, transnacionalizada15 ou contemporânea, vivencia um agravamento das desigualdades do modo de vida, que pode ser identificado tanto nos países ricos como nos pobres. Falhou assim o capitalismo, assinala Boaventura de Sousa Santos, com suas promessas gradativamente deterioradas, o que se manifesta nas crescentes desigualdades sociais, no alarmante aumento da pobreza, na redução dos recursos e do âmbito das políticas sociais e nas novas formas de exclusão e de autoritarismo, que ocorrem alicerçados em promessas de autonomia e de liberdade.16

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Afirma Ianni que globalização sintoniza com integração e homogeneização, tanto quanto com diferenciação e fragmentação. Essa sociedade está sendo formada por relações, processos e estruturas de “dominação e apropriação, integração e antagonismo, soberania e hegemonia”, o que gera uma configuração histórica e problemática, com desenvolvimento desigual, combinado e contraditório. Ocorre que as relações e forças que integram o antagonismo são as mesmas que o sustentam, uma vez que deparam diversidades, desigualdades, tensões e contradições. A sociedade global, além de plural, é múltipla e caleidoscópica: “A mesma globalização alimenta a diversidade de perspectivas, a multiplicidade dos modos de ser, a convergência e a divergência, a integração e a diferenciação; com a ressalva fundamental de que todas as peculiaridades são levadas a recriar-se no espelho desse novo horizonte, no contraponto das relações, processos e estruturas que configuram a globalização”.17

3 Fatores negativos da globalização

O lado perverso da globalização tem sido, até por sua notória evidência, o mais analisado e censurado por juristas, sociólogos e estudiosos em geral. Assim, Milton Santos entende ser a globalização, para a maior parte da humanidade, uma fábrica de perversidades, com crescente desemprego, aumento da pobreza,18 perda da qualidade de vida pelas classes médias e generalização da fome e do desabrigo em todos os continentes. Acentua o geógrafo e acadêmico que novas enfermidades se instalam, enquanto velhas doenças, tidas como extirpadas, retornam de forma triunfal: “A mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e se aprofundam males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção”.19

A informação, assim deformada de maneira despótica, merece observações de Santos, para quem os novos recursos técnicos deveriam criar condições para uma ampliação do conhecimento do planeta, assim como dos objetos que o formam e das sociedades que o habitam, beneficiando os seres humanos em sua realidadePage 54intrínseca. Nas condições atuais, contudo, lamenta o pensador, as técnicas da informação são utilizadas, em sua essência, apenas por um punhado de atores e em função de seus objetivos particulares. Todas essas técnicas da informação são apropriadas, pelo menos na atualidade, por alguns países e por algumas empresas, o que vem aprofundar os processos de criação de desigualdades, complementando: “É desse modo que a periferia do sistema capitalista acaba se tornando ainda mais periférica, seja porque não dispõe totalmente dos novos meios de produção, seja porque lhe escapa a possibilidade de controle”.20

A sociedade globalizada vivencia um agravamento das desigualdades do modo de vida, que pode ser identificado tanto nos países ricos como nos pobres, resultado, segundo Philippe Paraire, da adaptação do...

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