O mundo Atlântico e a constituição da hegemonia nagô no Candomblé baiano

AutorLuis Nicolau Parés
CargoProfessor de Antropologia na Universidade Federal da Bahia
Páginas165-185
1 Este texto é uma versão ampliada e atualizada do artigo “The Birth of the Yoruba Hegemony in Post-
Abolition Candomblé” publicado no Journal de la Societé des Américanistes 91-1, 2005. A tradução
preliminar do inglês foi realizada pelo Prof. Dr. Jó Klanovicz e logo revista pelo autor.
2 Professor de Antropologia na Universidade Federal da Bahia. Email: lnicolau@ufba.br.
O MUNDO ATLÂNTICO E A CONSTITUIÇÃO DAO MUNDO ATLÂNTICO E A CONSTITUIÇÃO DA
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HEGEMONIA NAGÔ NO CANDOMBLÉ BAIANOHEGEMONIA NAGÔ NO CANDOMBLÉ BAIANO
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Luis Nicolau Parés2
Resumo: Os dados históricos indicam que práticas religiosas jejes e nagôs, origi-
nárias da África ocidental, já estavam consolidadas em Salvador (Bahia, Brasil)
na década de 1860, sugerindo que sua organização se deu durante o período de
tráfico de escravos. Ainda que a etnogênese iorubá e o nacionalismo cultural e
racial do “Renascimento Lagosiano” dos anos 1890 pudessem ter contribuído
indiretamente para a “nagôização” do Candomblé baiano, este artigo sustenta
que a crescente hegemonia religiosa da “nação” nagô, cristalizada no final do
século XIX, foi, sobretudo, o resultado de micropolíticas locais de competição
entre crioulos afro-brasileiros.
Palavras-chave: Candomblé; Nagô; Identidade Etnorreligiosa: Bahia; Século
XIX.
Abstract: Historical data indicates that critical Jeje and Nagô religious practices
of West African origin were already well consolidated in Salvador (Bahia, Brazil)
in the 1860s, suggesting their rooting in the period of the slave-trade. While the
Yoruba ethnogenesis and the racial and cultural nationalism of the “Lagosian
Renaissance” in the 1890s may have indirectly contributed to the late 19th-century
Bahian “Nagôization” of Candomblé, the paper suggests that the increasing religious
predominance of the Nagô “nation” was mainly the result of competitive local
Creole micro-politics.
Key words: Candomblé; Nagô; Ethnic-religious Identities; Bahia; 19th century.
Persistência e recriação de práticas religiosas africanas trazidas para a Bahia
pelos escravos, o Candomblé é uma religião de possessão que envolve processos
de adivinhação, iniciação, sacrifício, cura e celebração. Para além desses aspectos
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litúrgicos compartilhados, os grupos de culto com frequência recorrem ao discurso
de “nações” para negociar, construir e legitimar suas diferenças rituais e identida-
des coletivas. De modo geral, hoje, as congregações de Candomblé se identificam
como pertencendo a uma das três principais nações: nagô, jeje ou angola, caracte-
rizadas pelo culto de diferentes tipos de entidades espirituais.3 Os nagôs cultuam os
orixás, os jejes, os voduns e os angolas, os enquices.4 Habitualmente, cada um
destes grupos de divindades africanas é louvado na língua ritual correspondente
(formas dialetais derivadas do iorubá, do gbe e do banto) e têm as suas particulari-
dades rituais (ritmos de tambor, danças, oferendas alimentares, etc.). Portanto,
apesar do ecletismo criativo e do movimento de valores e práticas através das
fronteiras de nações, certas características rituais são consideradas importantes
sinais diacríticos de uma continuidade, real ou imaginária, com um passado africa-
no e uma tradição religiosa particulares.
No Candomblé contemporâneo, a nação nagô – usualmente identificada
apenas como ketu5 – é dominante e o panteão dos orixás e a liturgia a ele asso-
ciada tornaram-se elementos distintivos da instituição religiosa como um todo.
Uma pesquisa realizada em Salvador, em 19986 mostra que as casas de culto que
se autoidentificavam como pertencentes à nação ketu, ou nagô-ketu, constituíam
56,4% do total (contra 27,2% dos angolas e meros 3,6% dos jejes). Numa pesqui-
sa mais recente7, realizada entre 2006 e 2007, essa percentagem aumentou para,
aproximadamente, 64%.
Em grande medida, a crescente predominância ketu deve-se à visibilidade
social e ao prestígio de três importantes casas de culto que reivindicam pertencer
a essa nação: o Ilê Iyá Nassô (também conhecido como terreiro do Engenho
Velho ou Casa Branca), o Gantois (ou Ilê Iyá Omin Axé Iyamassé) e o Ilê Axé
Opô Afonjá. A primeira, o Ilê Iyá Nassô, fundada por mulheres iorubás (algumas
delas supostamente originárias da cidade de Ketu) é considerada a casa matriz
de onde se teriam originado as outras duas: o Gantois, no meio do século XIX, e
o Opô Afonjá, em 1910.8 A agência dos praticantes nagôs (significativa a partir
do fim do século XIX), aliada à intervenção de intelectuais (a partir dos anos
1930) valorizando de forma seletiva aspectos do Candomblé como parte da cul-
tura nacional, veio reforçar o status e a autoridade dessas casas nagôs enquanto
guardiãs da pureza e da tradição africanas. Já a partir dos anos 1980, esses
terreiros têm sido utilizados pelos movimentos sociais negros como importantes
ícones de resistência cultural e de orgulho da identidade afro-descendente. Nes-
sa circunstancia, o referente nagô-ketu emergiu na esfera pública afro-brasileira
como uma marca de dignidade, prestígio e autoridade. Devido a isso, e no esfor-
ço de legitimar suas práticas, muitas congregações religiosas sem qualquer filia-
ção espiritual ou ritual com essas casas “tradicionais” escolheram se autoidenti-

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