Narrar uma vida e se inscrever na história: percursos do biográfico ao sociológico

AutorCamila Gui Rosatti - Rodrigo da Rosa Bordignon
CargoDoutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora associada ao CRBC/Mondes Américains (EHESS) - Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Páginas7-25
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2022.e.89570
77 – 25
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APRESENTAÇÃO
Narrar uma vida e se inscrever
na história: percursos do
biográco ao sociológico
Camila Gui Rosatti1
Rodrigo da Rosa Bordignon2
A “biograa”, como pontuou assertivamente Bernard Pudal (1994),
tornou-se uma “palavra-totem”. Ao unicar abordagens variadas em seu
entorno, o vocábulo serviu, mal ou bem, de emblema de um conjunto
heterogêneo de práticas e métodos de pesquisa nas ciências humanas e
sociais com uso sistemático da informação biográca, colhida em fontes
primárias ou reconstituída a partir de documentos variados. Ao menos nos
últimos trinta anos, o material biográco vem sendo instado a representar
o “concreto”, o “especíco”, o “particular”, o “singular” e mesmo o “sub-
jetivo”. Ao trazer contribuições que escapam do dualismo entre indivíduo
e sociedade, as ciências sociais avançaram enquadrando o singular como
parte do coletivo e evidenciando que, longe da abstração desses termos, é
1 Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora associada ao CRBC/Mondes Amé-
ricains (EHESS). E-mail: camila.rosatti@gmail.com
2 Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: rrbordignon@hotmail.com.
Apresentação
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nas práticas dos agentes, notadamente, na escala dos corpos, que se xam
costumes, regras, normas e interdições do mundo social.
Material de investigação à escala individual, a biograa se volta a si-
tuações concretas e possibilita comunicar conteúdos sociais expressivos.
Apreender como o contexto histórico e social modela o percurso dos indi-
víduos levanta questões quanto à singularidade de um projeto de vida, à ra-
cionalidade da ação humana e às condições de possibilidade dessa narrati-
va. Essas linhas de investigação pautam o presente dossiê e são trabalhadas
a partir de diferentes objetos empíricos e estratégias analíticas, que buscam
reetir sobre as possibilidades e os desaos de sua utilização.
Em desenvolvimento desde o início dos anos 1970 e saudada como
uma virada epistemológica nos anos 1980, diferentes abordagens que se
valeram do biográco ganharam rapidamente terreno nas ciências huma-
nas e sociais. O contexto de “crise” de explicações e de recusa de narrativas
totalizantes abriu maior espaço ao ponto de vista dos indivíduos, elemen-
to-chave para a ancoragem de experiências sociais mais amplas. Isso não
ocorre, é claro, sem levantar dúvidas e instaurar controvérsias. “Podemos
escrever a vida de um indivíduo?”, perguntava-se Giovanni Levi, em 1989,
no número temático “História e Ciências Sociais: uma virada crítica3, da
revista dos Annales, dossiê que marca um momento especíco de questio-
namento dos modelos interpretativos da historiograa e aposta na incorpo-
ração de abordagens das ciências sociais. Essa questão, decerto com alguma
carga retórica, ecoava as polêmicas em torno do uso das “histórias de vida”,
abordagem criticada por Pierre Bourdieu por sua linearidade e ambição de
coerência, que levaria a incorrer no problema da “ilusão biográca”. Com
essa expressão marcante e aada, que gura ao mesmo tempo no título de
seu artigo e do dossiê publicado em 1986 na Actes de la recherche en Sciences
Sociales, o sociólogo xou no debate uma noção crítica imprescindível para
pensar os riscos de projeção retrospectiva inerentes aos relatos de vida.
Sem desabonar as trajetórias das pessoas como objetos de análise, nesse
período se adensam os questionamentos nas ciências sociais sobre como
3 Os títulos do artigo e o dossiê são nossa tradução. O original em francês são, respectivamente, “Les usages de
la biographie” e “Histoire et Sciences Sociales: un tournant critique”, publicado na revista Annales. Économies,
Sociétés, Civilisations, 44e année, n. 6, 1989.

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