A transcendência da pena de perdimento de automóvel objeto de leasing financeiro aplicada à infração cometida por arrendatário

AutorRafhael Wasserman
CargoMestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Advogado
Páginas202-216

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1. Introdução

Compete às autoridades aduaneiras, no curso da fiscalização, reprimir condutas contrárias à ordem jurídica, evitando a evasão de tributos, por meio de aplicação de sanções, a exemplo da apreensão ou retenção de mercadorias irregularmente importadas. Ao lado da sanção de perdimento de mercadorias, impõe-se a pena de perdimento do veículo, desde que a infra-ção se enquadre nas hipóteses de "dano ao erário".

Valendo-se dos arts. 104 e 105 do De-creto-lei n. 37/1966 e dos arts. 23 e 24 do Decreto-lei n. 1.455/1976, que prevêem o cabimento de ambas as penas de perdimento, os agentes fiscais sancionam os sujeitos responsáveis pela prática de ilícitos que resultam em danos ao erário.

O presente trabalho concentra-se no teor do inciso V do art. 104 do Decreto-lei n. 37/1966, segundo o qual o veículo que conduzir mercadorias sujeitas à pena de perda será objeto da mesma penalidade, desde que pertencente ao sujeito responsável pela infração.

Situação peculiar sobre a qual ora se debruça corresponde à incidência da pena de perdimento sobre veículos arrendados, em virtude do cometimento de ilícitos por arrendatários.

O contrato de leasing produz efeitos quanto à propriedade e à posse direta do bem, que se dividem entre a arrendadora e o arrendatário, respectivamente. A primeira visa apenas auferir lucros com a operação financeira e não obter resultado pela utilização do bem arrendado, mantendo a propriedade sobre o bem como garantia do adimplemento contratual, o que evidencia a ausência de responsabilidade pelos ilícitos praticados pelo sujeito em decorrência do exercício da posse direta.

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Por conseguinte, a medida sanciona-tória deve ser analisada sem descurar dos reflexos atinentes ao contrato de leasing, sob pena de invasão da esfera de titularida-de de terceiro que não concorreu ou se beneficiou do ilícito.

Trata-se de ocorrência relativamente frequente, em face da quantidade significativa de veículos financiados por meio de operações de arrendamento mercantil, cujas especificidades não podem ser ignoradas na aplicação de sanções às condutas contrárias à legislação aduaneira.

2. "Leasing"financeiro: aspectos fundamentais

O contrato de leasing financeiro não é uma figura nova, tendo-se notícia de práticas semelhantes desde a alta Idade Média.1 Considera-se o ano de 1952 como marco fundamental do surgimento do leasing em moldes semelhantes aos atuais, atribuindo--se o crédito ao norte-americano D. P. Boo-the Junior, que elaborou uma forma de ter acesso a novos equipamentos para sua indústria sem comprometer imediatamente seu capital para a compra.2 Com o sucesso desse novo mecanismo de obtenção de bens de produção, o leasing se generalizou, dando origem a empresas especializadas nessa prática. A invenção de D. P. Boo-the Junior disseminou-se nos Estados Unidos e em outros países, como Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica e Itália, aparecendo no Brasil em meados da década de 1960.3

O leasing recebeu moldura legal no Brasil com a Lei n. 6.099, de 12 de setembro de 1974, que dispôs sobre o tratamento tributário das operações de arrendamento mercantil. Estabelece o parágrafo único do art. 1°: "Considera-se arrendamento mercantil, para os efeitos desta Lei, o negócio jurídico realizado entre pessoa jurídica, na qualidade de arrendadora, e pessoa física ou jurídica, na qualidade de arrendatária, e que tenha por objeto o arrendamento de bens adquiridos pela arrendadora, segundo especificações da arrendatária e para uso próprio desta".

Embora o legislador tenha se detido na regulamentação do leasing, é cediço que a Lei n. 6.099/1974 não adentrou a diversos aspectos significativos da figura jurídica, restringindo as prescrições à matéria tributária, tendo recebido críticas de Wal-dirio Bulgarelli, para o qual a disciplina legal é impositiva, desconexa e insuficiente.4 Nada obstante, o leasing foi paulatinamente regulamentado pelo Conselho Monetário Nacional, consoante autorizado pelo art. 23 da Lei n. 6.099/1974.

Conquanto o leasing ou arrendamento mercantil tenha aparecido há décadas,

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sua natureza jurídica (ou caráter jurídico) permanece controvertida. É preciso frisar, porém, antes de se examinar o caráter jurídico do leasing, que o termo agrega inúmeras figuras distintas e não apenas uma espécie contratual. Cite-se, a título exem-plificativo, o leasing mobiliário e imobiliário, o leasing operacional e financeiro, além de outros.

Corrobora-se com a concepção de Orlando Gomes,5 segundo a qual o leasing é um contrato autônomo, oriundo da combinação de elementos de outros contratos, dotado de causa própria e típico, por ter sido disciplinado pelo direito positivo pátrio.

A integração de uma pluralidade de relações obrigacionais típicas, unida por uma única causa, evidencia a complexidade dessa espécie contratual.6 Conforme assevera Judith Martins-Costa, o contrato de leasing é composto por elementos de: "(...) promessa de arrendamento, o arrendamento (ou locação) em si mesmo e o financiamento, mais os negócios jurídicos da opção, da renovação e da devolução (todos esses três configurando o exercício de direitos formativos), a serem exercidos alternativamente”.7

Agrega componentes de locação, compra e venda e financiamento. Observa--se certa proximidade com a locação quanto ao fornecimento a um dos contratantes de uma coisa não fungível por determinado período de tempo, mediante o pagamento de uma contraprestação. O leasing se asse-melha também à compra e venda, pois a arrendadora assegura ao arrendatário a opção irretratável de venda do bem ao término do contrato. Os pagamentos efetuados pelo devedor amortizam o preço da coisa arrendada e, caso opte pela aquisição da coisa, deverá pagar o valor residual garantido (VRG), que consiste na diferença entre o total das prestações pagas pelo arrendatário e o montante concernente aos custos da arrendadora e a margem de lucro.8 Por derradeiro, o leasing se equipara a uma operação de financiamento, razão pela qual se encontra sujeito ao controle e fiscalização do Banco Central, consoante dispõe o art. T da Lei n. 6.099/1974.

O leasing se apresenta em três modalidades principais: leasing operacional, leasing financeiro e o lease-back.

A primeira consiste na operação em que a empresa proprietária de determinado bem o dá em arrendamento ao interessado, bem como se responsabiliza pela manutenção e prestação de assistência e demais serviços necessários à operacionalidade da coisa arrendada no período de duração do contrato (podendo ficar a cargo do arrendatário), por um interregno inferior a setenta e cinco por cento do prazo de sua vida economicamente útil, mediante o pagamento de prestações que não podem superar noventa por cento do custo do bem (art. 6o da Resolução n. 2.309/1996 do Banco Central do Brasil, com a redação alterada pela Resolução Bacen n. 2.465/ 1998).9

O leasing financeiro corresponde à modalidade na qual a arrendadora adquire bem indicado pelo arrendatário de um for-

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necedor e o entrega mediante o pagamento de prestações periódicas. A arrendadora não é a fabricante ou a proprietária do bem, mas apenas o compra a partir de indicações do interessado para, em operação subsequente, arrendá-lo ao pactuante, que se torna responsável pela manutenção do objeto do arrendamento. Sendo assim, participam da operação três sujeitos: a arrendadora, o arrendatário e o produtor ou fornecedor do bem. As contraprestações e demais pagamentos previstos no contrato devem ser normalmente suficientes para que a arrendadora, no curso da vigência do contrato, recupere o custo do bem arrendado, bem como obtenha retorno sobre os recursos investidos na operação (art. 5o da Resolução Bacenn. 2.309/1996).

O lease-back, por derradeiro, é uma operação na qual o proprietário vende o bem à arrendadora que o arrenda ao vendedor, como forma de aumentar sua liquidez e manter a posse sobre o bem. No lease-back só há duas empresas envolvidas na operação, pois não existe um terceiro responsável pela venda da coisa. O proprietário passa a ocupar a posição de arrendatário, submetendo-se às mesmas regras aplicáveis ao leasing financeiro, tal como prescreve o art. 13, caput, da Resolução n. 2.039/1996 do Banco Central.

O leasing financeiro, espécie da qual se cuida no presente artigo, subdivide-se em diversas etapas: (a) o arrendatário indica um bem a ser adquirido pela arrendadora; (b) aprovada a proposta, é celebrado o contrato e adquirido o bem; (c) a arrendadora transfere a posse direta ao interessado, mantendo a propriedade; (d) adimpli-das as parcelas, o arrendatário tem a opção de adquirir o bem, devolvê-lo à arrendadora ou renovar o contrato.

A operação de leasing se inicia com a escolha do bem e a definição das cláusulas contratuais, a exemplo do valor do contrato, do número e do montante das prestações, do prazo de vigência e do valor residual garantido (a ser pago ao término da avença na hipótese de exercida a opção de compra do bem).10 A arrendadora adquire o bem indicado pela empresa de um terceiro, sem a participação direta do arrendatário. Celebrado o contrato, o bem é entregue, mediante o pagamento de prestações periódicas. Findo o prazo da avença, cabe ao arrendatário manifestar seu interesse em adquirir o bem, renovar o arrendamento ou restituir a coisa à arrendadora.

O leasing é composto por interesses negociais distintos, por parte da credora e do devedor. Nada obstante, também diferem pelos arrendatários de acordo com a modalidade de leasing em...

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