Violência: construção cultural

AutorNoli Bernardo Hahn
CargoDoutor em Ciências da Religião, área de concentração Ciências Sociais e Religião, pela UMESP. Graduado em Filosofia e Teologia. Bacharelando em Direito. Professor do programa de pósgraduação em Direito – Mestrado da URI, campus de Santo Ângelo.
Páginas127-138

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Introdução

O tema violência tem recebido distintas abordagens ao longo dos anos. Pesquisou-se a realidade da violência a partir e através de mediações de diversas ciências. Há contribuições importantes de sociólogos, antropólogos, juristas, filósofos, psicólogos, teólogos, para entender a realidade da violência, que fez história com a história humana. Isso mostra que não é possível uma única ciência assumir o desafio de dar conta da amplitude e da complexidade do que é denominado violência.

Vivemos, também, num momento histórico em que nos é dito repetidamente que precisamos aprender a conviver com a violência; que necessitamos aprender a nos proteger; que precisamos educar as novas geraçõesPage 128para saber lidar com contextos e com situações de violência, especialmente as grandes cidades.

Quando se escuta tais afirmações, aponta imediatamente a intrigante pergunta: essas idéias não querem afirmar que a violência é algo natural, que ela provém e é um integrante da “natureza” humana e, por isso, não tem volta, somos forçados a uma condição de aprender a conviver com uma realidade “natural” violenta?

Neste texto, elaboro uma reflexão sobre violência deixando-me guiar por esta pergunta: a violência é, ou não, um fenômeno e um aprendizado cultural? Parto de vários pressupostos para argumentar que a violência é, sim, uma manifestação e um aprendizado cultural, com base em matrizes teóricas que condicionam o humano a ser violento.

Enumero, introdutoriamente, alguns pressupostos que embasam a argumentação da idéia central deste artigo:

- O ser humano nasce condicionado a ser humano. Ele não nasce nem predeterminado, nem predestinado. A vida humana é condicionada e não predeterminada.

- O ser humano não nasce violento. A violência é construção cultural.

- O ser humano é constituído e se constitui como busca e cuidado. (O humano constrói-se e é construído; projeta-se e é projetado; cria-se e é criado; desenvolve-se e é desenvolvido; faz-se e é feito).

- A violência se gera quando o ser humano desconecta a dimensão busca da dimensão cuidado.

- A violência de gênero é uma face de violência quando ocorre a desconexão entre cuidado e busca e a objetivação do outro é um resultado da falta de cuidado e da prática exclusiva da dimensão busca.

Esses pressupostos estruturam o artigo em cinco partes. Inicio a reflexão pelo tema da condição humana.

1. Condicionados a ser humanos

Nascemos condicionados a ser humanos. Não somos predestinados ou predeterminados a ser o que somos. Não nascemos prontos e acabados. Nascemos, sim, e apenas, com condições humanas e somos postos em meio a condicionantes.

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É condição humana ser condicionado, o que significa que somos resultado de condições nas quais fomos e estamos inseridos, contextualizados e inscritos.

O mundo no qual estamos nos condiciona. Esse mundo nada mais é do que invenção e criação humana. Ele é fruto da inteligência práxica, simbólicoabstrata, representacional e memorial que apenas os humanos dispõem. Tal mundo, que é um mundo-de-sentido - por isso humano - com seus significados e significantes, recebe o nome de cultura. Esta, a cultura, é resultado de duas habilidades que os humanos desenvolvem: habilidade para construir (Homo faber) e a habilidade para usar linguagens (Homo loquens). (Veremos, ao longo do artigo, que a violência é construída fundamentalmente no processo em que os humanos constroem e no uso de linguagens).

Como criação humana, cultura não é e jamais será estática. A sua dinamicidade se mostra em duas dimensões: de um lado, ela é invenção constante; de outro, a cultura já criada constrói numa dinamicidade incessante o humano. Por isso diz-se que a “natureza” humana é cultural. Somos, portanto, criadores do mundo que também nos constrói. Enquanto criada e criadora, construída e construtora, princípio e caminho – não fim –, a cultura é um rosto dinâmico como manifestação de um projeto do humano. O humano como tal não é. Ele se faz e é feito, se cria e é criado, se desenvolve e é desenvolvido, se constrói e é construído através de um caminhar num contexto, numa inserção, numa inscrição, no entanto não desvinculado de inserções, de contextos e de inscrições memoriais. O humano, aqui, entendido em sua dimensão individual e coletiva, não de forma dual, mas como relação.

As identidades culturais singulares de indivíduos e coletividades se formam nessa dinamicidade e assim devem ser compreendidas. Toda identidade é condicionada em e a partir de condições e de condicionantes contextuais, porém os contextos não são fragmentos desconectados de uma memória coletiva histórica que, até, pode mostrar-se, por vezes, fragmentada.

Cada identidade cultural construída e criada imprime perspectividade, ou seja, um conjunto de significados e significantes elaborados e comungados por um grupo humano não necessitam ser compartilhados e/ou seguidos por outro. Isso evidencia um elemento novo e fundamental: a cultura, além de ser criação sempre inacabada de um projeto humano, a partir de condições contextuais vinculadas a uma memória histórica, é construída a partir de inúmeras vozes e de perspectivas plurais.

Uma identidade cultural, que se encontra sempre em construção, a partir de uma perspectiva, vai demarcando conceitos, compreensões, autocompreensões, além de comportamentos e atitudes. O justo e o injusto, a bondade e a maldade, lembrando apenas esses atributos entre tantos que poderíamos citar, são atribuições que se constroem a partir de uma cultura na qual estamos inseridos. Em outrasPage 130palavras, o que denominamos de bom ou ruim, de justo ou injusto, é demarcado a partir de marcos culturais e, também, elaborado e construído desde um mundo de significados e significantes, que é o mundo cultural.

Não somos, por conseguinte, bons ou maus, justos ou injustos pela constituição biológica. A estrutura biológica que somos é uma condição humana, mas aprendemos e desenvolvemos, a partir de uma inserção cultural, a ser o que somos. O humano e o...

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