Experiência e apropriação na página modernista

AutorAnthony Heden Machado
Páginas72-87
Experiência e apropriação na página modernista
Anthony Heden Machado
I – Palimpsestos modernos
As Palavras, de Jean-Paul Sartre, é um livro que se justifica em seu próprio precon-
ceito: regido pelo signo da lembrança, conta-nos a trajetória de uma escrita em fundamento
e evolução, percorrendo toda a sua aventura, mas faz desse percurso uma total apoteose.
Desse livro, portanto, podemos dizer que a verdade está na sua parcialidade. Poderia ser
também, ao certo, um livro de queixas: Sartre reclama para si o posto de "pequeno existen-
cialista", misturando, claramente, no livro, a quem o lê e a quem o escreve, as inclinações
do adulto e as impressões infantis: ele quer nos surpreender a cada evento, apagar as suspei-
tas pela boa-fé, cancelar as distrações e incertezas trocando-as pelo Destino, constituindo
uma certeza de que o livro o tempo todo escapa.
Mas a religiosidade tacanha tão bem expressa na linguagem poética de Sartre tem
ainda uma outra vantagem: mostra-nos que, para além do filósofo convenientemente agita-
dor e importante no menoscabo dos que o olham, passagens inteiras dão – com a honestida-
de cega de quem nunca esperou chegar a esse alvo – a receita de uma escrita muito peculiar
à modernidade, quase que a essência desta, quase o dom maior dessa escrita tão próxima de
nós.
Na passagem em que descreve o seu "Caderno de romances" – obra seriamente des-
tinada a ser apenas pretensão juvenil –, e como este começou a ser preenchido, Sartre nos
conta, tal qual um prestidigitador que já não agrada, as artimanhas a que recorreu para dar-
se ao que mais seus projetos correspondiam ser: um escritor.
Mal comecei a escrever, pousei minha pena para rejubilar-me. A impostura era a
mesma, mas eu já disse que tomava as palavras como quintessência das coisas.
Nada me perturbava mais do que ver meus garranchos trocando pouco a pouco
seu brilho de fogos-fátuos pela pálida consistência da matéria: era a realização do
imaginário. Colhidos na armadilha da nominação, um leão, um capitão do Segun-
do Império, um beduíno introduziam-se na sala de jantar; permaneciam aí cativos,
para sempre incorporados pelos signos; acreditei ter ancorado meus sonhos no
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mundo pelas arranhuras de uma ponta de aço. Pedi que me dessem um caderno,
um vidro de tinta violeta, inscrevi na capa: "Caderno de romances". O primeiro
que levei a cabo intitulei: "Por uma borboleta". [...] O argumento, os personagens,
o detalhe das aventuras, o próprio título eu tomava a uma história em quadrinho
que aparecera no trimestre precedente. Este plágio deliberado me livrava de mi-
nhas últimas inquietações: tudo era forçosamente verdadeiro, visto que eu não in-
ventava nada. Eu não ambicionava ser publicado, mas dera um jeito de ser im-
presso antecipadamente e não traçava uma só linha que meu modelo não caucio-
nasse. Considerava-me um copista? Não. Mas sim um autor original: eu retocava,
remoçava [...]. Essas ligeiras alterações me autorizavam a confundir a memória e
a imaginação. 1
Soa bem como a assunção vocacional que produzirá inveja: a criança que maneja as
palavras à sua maneira para, posteriormente, na idade adulta, operar o quanto de mudanças
forem possíveis através desse mesmo manejo. O escritor acaba por existir apenas em seu
projeto de existencialismo precoce, admirando em si mesmo a oportunidade de seus atos.
Mas a confissão de Sartre – que não serve senão para atestar sua idoneidade páginas
à frente – não deixa de demonstrar um aspecto interessante do ato da escrita: copiando o
anterior, plagiando (e há outra forma?), permitindo que se confundam na pequena cabeça "a
memória e a imaginação", Sartre confia a nós mais do que se propôs; ele nos dá a permis-
são para ler infinitas vezes seu depoimento como sendo exatamente a fundamentação da
escrita – direi da arte, mais à frente –, de um drama muito peculiar ao movimento moderno.
Pois, mais que se tratar de sua escrita, Sartre – delator de si mesmo – exibe como a escrita
impulsionada pelo desejo – pelo que ele chama depois de "inspiração", no melhor estilo
romântico – tende a recorrer a um protocolo único não em suas idéias e mazelas, mas no
processo que empreende para chegar ao termo a que se propõe: a mistura entre memória e
imaginação, dotada de curiosa pureza e interesse maior, sublinha, ainda, que a arte nada
tem de livre; que não se liga a uma concepção ex nihilo como suspeitam os seguidores me-
nos públicos e os discípulos mais entusiastas de Gaston Bachelard, dentre eles, Gilbert Du-
rand 2; que impõe às noções de "autoria" e de "originalidade" um olhar judicativo e descon-
fiado. Como o agoniado Pierre Menard, Sartre mostra, na reprodutibilidade de sua infância,
o caminho para aquilo que ele se dispõe a ser: um autor original e não um copista, reafir-
mado poeticamente pelo olhar que se volta sobre si mesmo, mas desviando um canto de
olho para fora: "Eu não ambicionava ser publicado, mas dera um jeito de ser impresso ante-
1 SARTRE, Jean-Paul. As Palavras. Trad. J. Guinsburg. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 96.
2 Em As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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