Nem deuses nem heróis: a ação sindical dos trabalhadores da saúde durante a pandemia de Covid-19

AutorPatrícia Vieira Trópia
CargoProfessora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia.
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.82767
4141 – 77
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Nem deuses nem heróis: a ação
sindical dos trabalhadores da saúde
durante a pandemia de Covid-19
Patrícia Vieira Trópia
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar o impacto da pandemia de Covid-19 entre prossionais de enfer-
magem e medicina e o modo como suas entidades sindicais reagem a partir de sua deagração no
Brasil. A pandemia trouxe à tona a histórica fragilidade dos serviços públicos de saúde, afetados
pelos sucessivos cortes de gastos que levaram à redução de concursos públicos e do contingente
de prossionais com vínculos estáveis. Diante da situação de urgência sanitária, os trabalhadores
da saúde caram ainda mais vulneráveis ao adoecimento e à morte. Os sindicatos da área da saúde
reagiram. Além de ativas e solidárias, as entidades realizam ações unitárias, ultrapassam os limites
da luta propriamente reivindicativa e politizam a luta sindical durante a pandemia. Realizaram atos
em defesa da vida, da democracia e do movimento Fora Bolsonaro.
Palavras-chave: Trabalhadores da saúde. Covid-19. Ação Sindical. Ativismo sindical.
1 Introdução
A analogia entre pandemia e guerra tem sido um recurso recorrente-
mente empregado para expressar a dramática situação sanitária vivida pelos
países e por suas populações no enfrentamento ao vírus SARS COV-2.
Nesta narrativa, o vírus seria o inimigo a ser abatido, os hospitais seriam
a linha de frente e os prossionais de saúde seus heróis (PEREIRA et al.,
2020). Esta narrativa alude a um momento de urgência que, objetivamen-
te, mobiliza e leva equipes de saúde responsáveis pelos cuidados a pacien-
tes adoecidos ao completo esgotamento. Mas, por sua vez, ao clamar por
heroísmo ou ainda pela imprevisibilidade do coronavírus, ela ilude, na
medida em que oculta o alerta de pesquisadores e ativistas em torno do
Nem deuses nem heróis: a ação sindical dos trabalhadores da saúde durante a pandemia de Covid-19 | Patrícia Vieira Trópia
(INCIS/UFU)
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risco de surgimento de novas pandemias (LEITE, 2020); a negligência dos
Estados nacionais em relação às necessidades dos sistemas públicos de saú-
de (SAAD FILHO, 2020); as determinações da conjuntura que estamos
vivendo particularmente no Brasil com a sobreposição de crises econô-
mica, social e sanitária1; e, nalmente, a realidade enfrentada pelos pro-
ssionais de saúde e agravada pelas políticas neoliberais. A adoção destas
políticas reduz o contingente de prossionais concursados e institui formas
de gestão público-privada, por meio das Organizações Sociais (OS), que
ampliam as formas de subcontratação com a terceirização e a “pejotização”.
Como alertam Pereira et al. (2020, p. 16), “a retórica do conito e do ini-
migo pode traduzir-se numa linguagem que tende a substituir o ‘inimigo
invisível’ por ‘inimigos visíveis’” e a romantizar as condições concretas em
que trabalham, há anos, as equipes de saúde que hoje se encontram na
atenção aos pacientes infectados pelo novo coronavírus.
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
declarou o status de pandemia para a Covid-19, doença transmitida pelo
vírus SARS Cov-2 (WHO, 2020a). O sinal de alerta soara no nal de de-
zembro, na cidade de Wuhan, situada na província chinesa de Hubei, onde
passaram a ser noticiados casos de pacientes com pneumonia viral atípica.
No nal do mês de janeiro a doença passa a ser considerada uma emer-
gência de saúde pública de importância internacional (ESPII) (WHO,
2020b). No início de março, a OMS alertou para o aumento da produção
mundial de EPIs. E, em 13 de março de 2020, o epicentro foi a Europa.
No Brasil, o primeiro caso foi conrmado em 26 de fevereiro, em São
Paulo. Tratava-se de um homem de 61 anos que viajara para a Itália. Uma
semana depois, o país já havia conrmado oito casos e registrava também
transmissão interna. No dia 13 de março, o Ministério da Saúde regula-
mentou critérios de isolamento e, quatro dias depois, já foram registrados
291 casos, milhares de suspeitos e a primeira morte, de uma empregada
doméstica de 63 anos, infectada em seu ambiente de trabalho pela patroa
1 Em janeiro de 2021, a PNAD-C (IBGE, 2021) registrou 14,2 milhões de desempregados(as), índice recorde na
série história; 5,9 milhões de desalentados(as); 32,3 milhões de pessoas subutilizadas; 39,7% de taxa de infor-
malidade; renda média de R$ 2.521,00 (2,9% inferior que no trimestre anterior).
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 20 - Nº 48 - Mai./Ago. de 2021
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que havia viajado ao exterior. No dia 20 de março, o Ministério da Saúde
reconheceu a transmissão comunitária em todo o território nacional.
Editada em 06 de fevereiro de 2020, a Lei nº 13.979 dispôs sobre as
medidas para enfrentamento à situação de emergência de saúde pública
de importância internacional (ESPII) decorrente do surto do coronavírus,
entre as quais a denição de isolamento, quarentena e demais medidas pre-
ventivas – uso de máscaras, estudos epidemiológicos, exumação, necropsia,
cremação e manejo de cadáver etc. – bem como medidas restritivas tem-
porárias à circulação de pessoas em rodovias, portos ou aeroportos, saída
e entrada no país (BRASIL, 2020a). Por meio do Decreto nº 10.282, de
20 de março de 2020, o governo Bolsonaro deniu os serviços públicos
e as atividades essenciais que não podem ser paralisados com as medidas
de quarentena ou lockdown e que são “indispensáveis ao atendimento das
necessidades inadiáveis da comunidade” posto que, “se não atendidos, co-
locam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”
(BRASIL, 2020b). O momento de urgência tornou, então, essenciais uma
série de serviços entre os quais os de assistência à saúde. Entrementes, o
fato de serem denidos como essenciais não garante aos trabalhadores res-
ponsáveis por estes serviços a valorização de seu trabalho, nem a “proteção
necessária para sua realização” (CAMPOS et al., 2021a, p. 362). Como
armou uma liderança do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN),
no mesmo dia em que foi editado o Decreto nº 10.282, “[...] inevitavel-
mente a categoria estará na linha de frente, em contato 24 horas com casos
suspeitos e conrmados” (BAHIA, 2020, [s. p.]), necessitando de equipa-
mentos de proteção, individual e coletiva, e capacitação para os protocolos
determinados pelo Ministério da Saúde.
A rigor, diante de uma situação de urgência sanitária, caracterizada
pela OMS como emergência de saúde pública de importância internacio-
nal, os trabalhadores da saúde caram ainda mais vulneráveis ao adoeci-
mento e morte. Eles já viviam jornadas exaustivas e enfrentavam os efeitos
de um sistema público de saúde fragmentado (SOUZA et al., 2019), da
redução do papel do Estado na prestação de serviços aos cidadãos, do for-
talecimento do mercado de capitais das empresas de saúde (LAVINAS;

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