Teoria constitucional do direito: o neoconstitucionalismo e a ordem jurídica contemporânea

AutorSamuel Mânica Radaelli
Páginas67-80

Page 67

1 A supremacia da Constituição

A Constituição12 trata do desafio proposto por Rousseau, ou seja, o de “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado por intermédio da força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como antes”3. Assim sedimenta as garantias individuais e traça os horizontes políticos do Estado.

A atividade jurídica busca revelar os contornos empíricos deste pacto ético, jurídico e político, traçando suas dimensões dogmáticas, tarefa complexa na atual compreensão do Direito, tido como um sistema normativo de regras e princípios4, tendo função normativa preponderante e não apenas suplementar.

Essa configuração associa-se à “expansão” do Direito Constitucional, que no Brasil se deu em razão de duas características principais: pelas novas gerações (dimensões) de direitos humanos e o caráter programático da Constituição de 1988, propondo objetivos, aos quais estão vinculadas todas as ações legislativas.

Houve o fortalecimento da Constituição como estrutura normativa com ampla inserção social, tornando-se de fato o documento cuja função é fundamentar as práticas do Estado. A Constituição apresenta-se não só como base da estrutura normativa, mas também como filtro, quando da aplicação do Direito infraconstitucional. Em face disso, a interpretação constitucional passa a ser uma atividade fundamental para a realização do Direito, uma vez que todos os seus ramos passam a ser permeados pelo paradigma constitucional.

Page 68

Essa imbricação entre normas constitucionais e direito infraconstitucional reflete o fenômeno da constitucionalização do Direito. A Constituição passa a ser o norte a determinar a realização do Direito, fazendo com que a sua aplicação, mesmo nas relações privadas, seja feita mediante filtragem constitucional, adequando o sentido da lei à Constituição.

O constitucionalismo contemporâneo está intrinsecamente ligado à reconstrução da dogmática jurídica, ou seja, do Direito tende a abandonar a dimensão controladora (ou opressiva), denunciada por movimentos críticos. Hoje, ao contrário, do período anterior a 1988, as demandas por cidadania têm nos princípios constitucionais uma ferramenta a respaldá-las.

A Constituição de 1988 possibilita novo horizonte para o Direito, considerando seus conteúdos sociais, com objetivos democráticos visando à promoção dos direitos humanos: faz do Direito um instrumento de transformação da realidade, que propõe rupturas na estrutura da sociedade e permite, em virtude disso, o “retorno ao Direito”.5

O Direito, por meio da Constituição, assume verdadeiramente a sua função de promoção, mais do que de sanção. Sob este ângulo, os institutos tradicionais passam a ser aplicados levando em conta os princípios e os objetivos constitucionais, o que concede novo sentido, ou seja, dos mesmos textos são produzidas novas normas.

Soma-se a esse processo os novos institutos consolidados em nossa legislação (boa-fé, função social, etc.) dando uma nova roupagem ao direito, à medida que acentua a dimensão ética dos seus fundamentos.

Em decorrência dessas transformações faz-se necessária a construção de outras “verdades” para o Direito, novas construções dogmáticas. A dogmática jurídica tem o desafio de desenvolver no seu campo de atuação a sistematização dos sentidos factuais dos princípios jurídicos.

O atual estágio do direito constitucional determina uma transformação no modo de ser do direito, o qual passa a ser pensado por meio da Constituição, não só a partir dela, ou seja, a Constituição, além de ser a base da qual parte e se estrutura o direito, ela permeia todo o horizonte de produção, dogmatização e aplicação do direito. O direito sai da adequabilidade legislativa para a adequabilidade aplicativa/jurisdicional.

A Constituição expande o seu conteúdo, bem como o seu potencial regulativo, uma vez que o direito passa ser interpretado (filtrado) pela Constituição. Desse prisma, tem-se duas dimensões extremamente presentes no Constitucionalismo atual: a ética e a hermenêutica.

O Direito caminha pouco a pouco rumo ao constitucionalismo, sobretudo, reconhecendo a necessidade de incorporar, ao seu modo de ser, o conjunto dePage 69 disposições programáticas e, principalmente, meios de promoção dos direitos humanos.

A Constituição em seu sentido mítico deixa de ser uma hipótese, passando a habilitar o imaginário para uma outra prática jurídica, levando em conta o agir ético que orienta o modo de ação do direito.

2 Neoconstitucionalismo e pós-positivismo

Marcelo Galuppo apresenta como uma das características da epistemologia pós-positivista6 a negação do caráter sistemático, característico da tentativa positivista de reduzir a realidade a um sistema harmônico e sem contradições. Ao contrário, o direito, se apresenta como uma construção com conflitos presentes no seu modo de ser e reflexos de uma sociedade plural e heterogênea. Destarte, elas podem ser consideradas em uma perspectiva problemática “la nocion de estructura jerárquica no puede ser tratada como uma noción unívoca y no problemática, ya que em los ordenamientos jurídicos evolucionados se entrelazan uma multiplicidad de relaciones jerárquicas entre normas7.

Calsamiglia caracteriza o pós-positivismo pelo combate a duas características positivistas: “em primer lugar, la defensa de la teoria das fuentes sociales del derecho y em segundo lugar, la tesis de la separación entre el derecho, la moral y la politica”8

Antonio Maia trata como termos sinônimos a expressão neoconstitucionalismo e pós-positivismo, considerando este a nominação brasileira para aquele termo9, contudo, essa não parece ser a postura mais adequada, porquanto o pós-positivismo pode englobar posturas que não levem em conta o sentido primaz do constitucionalismo, assemelhando-se, assim ao referido movimento apenas pela crítica ao positivismo.

Há ainda um conjunto enorme de autores que tratam o neoconsitucionalismo como uma perspectiva teórica perfeitamente adequada ao positivismo jurídico.10 Apesar do grande e qualificado número de escritos que sinalizam a congruência entre neoconstitucionalismo e positivismo, ela não é a compreensão mais adequada, mesmo considerada a perspectiva do positivismo inclusivo.

Page 70

A perspectiva constitucional assumida pós 1988 não aceita se enquadrar na perspectiva positivista, visto que para Zagrebelski, “segun la mentalidad del positivismo jurídico, las normas de princípio, al contener formulas vagas, referencias a aspiraciones ético-políticas, promessas no realizables por el momento, esconderian, um vacio jurídico y producirian uma contaminacion de lás verdaderas normas jurídicas com afirmaciones políticas, proclamaciones de buenas inteciones”11. A Constituição se afirma como norma fundamental suprema. O Direito então é pautado por documento que é um pacto ético-jurídico-político, consequentemente, ele não pode fugir dessa vinculação quando da aplicação do Direito.

A Teoria jurídica atual parte de uma justificação moral dada pela Constituição:

Así pues , la observância de la constitución, em la medida em que ésta sea también uma norma, debe justificarse em base a normas de caráter superior. Dicho de outro modo, si um juez recorrela cadena de competencia, partiendo de la norma aplicable al caso concreto, llegará a la carta consitucional. Pero esta última, si bien representa um limite interno al ordenamiento jurídico, contextualmente constituye um puente que permite el pasaje al discurso moral. Este último es, em última instancia, el único discurso que puede prover uma justitifcacións a la observância o la aplicaión del derecho. Em efecto, uma norma moral se acepta em virtud de su contenido y no por su gênesis; ella sola, por tanto, constituye la justitificaion ultima de uma acción o de uma decisión. La justitifcación jurídica, pues, es em ultima instancia necesariamente moral.12

No neoconstitucionalismo, diferentemente do positivismo, os princípios não possuem valor apenas subsidiário, mas sim papel preponderante, uma vez que foram “convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”.13 Os princípios relacionam-se com as regras, determinando-lhes a aplicação, possuem ainda caráter normogenético, pois são os fundamentos das regras.14

Por essa razão, não parece plausível a vinculação entre positivismo e neoconstitucionalismo, sustentada por autores como Comanducci, que afirma que “la teoria del derecho neoconsitucionalista resulta ser nada mais que o positivismo jurídico dos nossos dias .15 Pode-se tratar do neoconstitucionalismo como expressão do pós-positivismo, conquanto, ele desafia os pressupostos positivistas.

Page 71

A teoria jurídica tem de tratar agora com as novas características e desafios resultantes da evolução do Direito Constitucional. Como descrito por Luis Pietro Sanchís, lida-se hoje com:

Mais princípios que regras; mais ponderação que subsunção; onipresença da Constituição em todas as áreas jurídicas e em todos os conflitos minimamente relevantes, em lugar de espaços extensos em favor da opção legislativa ou regulamentadora; onipotência judicial em lugar da autonomia do legislador ordinário e por ultimo coexistência de uma constelação plural de valores, por vezes tendencialmente contraditórias, em lugar de uma homogeneidade ideológica em torno de um pequeno grupo de princípios coerentes entre si e em torno, sobretudo, das sucessivas opções legislativas.16

Em decorrência, o positivismo jurídico não consegue contemplar em seu projeto as novas características que o constitucionalismo contemporâneo traz ao Direito, esgotados os pressupostos positivistas, a teoria jurídica, disciplina a qual cabe a definição da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT