As transformações dos sistemas jurídicos contemporâneos: apontamentos acerca do neoconstitucionalismo

AutorAntonio Cavalcanti Maia
CargoProfessor de Filosofia do Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Professor de Filosofia Contemporânea da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio).
Páginas1-29

Os cidadãos podem (...) considerar que a Constituição é um projeto coletivo visando a realização cada vez mais completa de um sistema de direitos fundamentais já estabelecidos.

Jürgen Habermas

Para uma Constituição como a brasileira, que formulou tantos princípios sociais generosos, surge, com base nesse fundamento, uma pressão forte para, desde logo, se dizer que as normas que não possam ser aplicáveis sejam declaradas como não vinculantes, isto é, como simples normas programáticas. A Teoria dos Princípios pode levar a sério a Constituição sem exigir o impossível. Ela pode declarar que normas não executáveis são princípios que, em face de outros princípios, hão de passar pelo processo de ponderação. E assim, 'sob a reserva do possível, examinar aquilo que razoavelmente se pode reclamar e pretender da sociedade'.

Robert Alexy

Page 1

1. Introdução

As transformações observadas em diversos sistemas jurídicos avançados têm demandado esforços à reflexão teórica: imperioso o desenvolvimento de um novo quadro de referência capaz de dar conta das significativas mudanças acarretadas pela implementação do Estado democrático constitucional contemporâneo. A principal mudança refere-se ao papel desempenhado pelo texto constitucional em nações da tradição continental - Alemanha, Itália, Espanha e Portugal. Não mais um texto que sirva como um "esboço orientativo que deve ser simplesmente 'respeitado' pelo legislador", mas sim um "programa positivo de valores que Page 2 deve ser 'atuado' pelo legislador".1Assim, como esclarece também Sastre Ariza sobre esta mudança do papel desempenhado por certas textos legais contemporâneos, "as constituições atuais são limite e direção ao mesmo tempo"2. Desta forma o constitucionalismo europeu contemporâneo reconhece por um lado a tradição liberal que entende a ordem constitucional como um instrumento par excellence de garantia da esfera mínima intangível de liberdade dos cidadãos e, por outro, incorpora as modificações consagradas no perfil do constitucionalismo a partir do modelo das Constituições alemã e italiana do pós-guerra. Com efeito, como sintetiza Prieto Sanchís "A constituição já não é mais uma norma normarum à moda de Kelsen, encarregada somente de distribuir e organizar o poder entre os órgãos estatais, mas é uma norma com amplo e denso conteúdo substantivo que os juizes ordinários devem conhecer e aplicar a todo conflito jurídico"3.

A incorporação de conteúdos substantivos no ápice das estruturas legais, com a rematerialização da Lei Maior, implicou, entre outras coisas, uma nova forma de enfrentar a vexato quaestio da filosofia do direito: as relações entre direito e moral4 - já que os princípios constitucionais abriram uma via de penetração moral no direito positivo. Como afirma Ralf Dreier, "as constituições políticas de determinados Estados, ao incorporar certos princípios (dignidade da pessoa humana, solidariedade social, liberdade e igualdade) ao direito positivo como princípios juridicamente válidos e como expressão da ética política moderna, estabeleceram uma relação necessária entre direito e moral, já que graças a ela se exige, por direito próprio, em casos de vaguidade e colisão, aproximar a noção do direito como ele é do direito como ele deve ser."5 Assim, estas transformações, que ocorreram também em nossa experiência legal - em especial a inclusão de um largo catálogo de direitos fundamentais e Page 3 inúmeros princípios jurídicos, observada a partir de 1988 -, demandaram a necessidade de criação de uma categoria para descrever, compreender e melhor operacionalizar a aplicação efetiva dos materiais normativos positivados em nossa Constituição Cidadã.

Estas transformações impuseram à nossa dogmática constitucional a necessidade de elaboração de uma nova referência: o pós-positivismo6, situando assim o pensamento jurídico contemporâneo para além da estiolada querela jusnaturalismo versus positivismo jurídico. Entretanto, como não poderia deixar de acontecer em nações periféricas, a reflexão teórica aqui desenrolada está sobredeterminada pelos influxos especulativos das culturas jurídicas mais maduras. Ora, no debate norte-atlântico, em especial na tradição continental européia, observaram-se transformações semelhantes àquelas ocorridas em nossa formação social; entretanto, o termo pós-positivismo7 não tinha se consagrado como o mais apto à descrição desta nova configuração legal. Eis que esta nova realidade jurídico-constitucional que ensejou o surgimento da categoria pós-positivista em nosso âmbito cultural vem sendo denominada nas doutrinas espanhola e italiana neoconstitucionalismo.

Neste artigo, procurarei apresentar algumas características deste novo paradigma (também chamado de constitucionalismo de direitos, constitucionalismo avançado ou simplesmente paradigma argumentativo). Tal reflexão relaciona-se com a temática deste volume8 na medida em que o fenômeno da constitucionalização do direito se expressa também através da progressiva extensão que a argumentação baseada em princípios e direitos fundamentais alcança nos mais diferentes campos do direito positivo. A apresentação do tema do neoconstitucionalismo se dará, em primeiro lugar, a partir de uma contextualização Page 4 referenciada às transformações operadas no sistema jurídico brasileiro9; em segundo lugar, enfocarei o neoconstitucionalismo sob três aspectos: no primeiro sentido, o neoconstitucionalismo como um certo tipo de Estado de direito caracterizando uma determinada forma de organização política; no segundo sentido, entende-se como uma teoria do direito que serve para descrever e operacionalizar o mais criteriosamente possível este modelo e, no terceiro sentido, uma filosofia política ou ideologia que justifica esse modelo.

2. Sobre as transformações nos sistemas jurídicos contemporâneos: o caso brasileiro

Nas últimas décadas, assistiu-se no Brasil a um enorme florescimento dos estudos juspublicistas. Por um lado, a promulgação de nossa Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, obrigou ao desenvolvimento de toda uma nova dogmática constitucional; por outro, o amadurecimento de nossa vida universitária, sobretudo através da expansão e da consolidação de cursos de pós-graduação, elevou a um patamar mais sofisticado a reflexão teórica de nossa doutrina. Page 5

A Constituição Federal de 1988, de matriz principiológica, nitidamente inspirada nas constituições Ibéricas - frutos dos vitoriosos movimentos democráticos da década de 70 -, introduziu uma nova configuração no âmbito do direito público: um texto que extravasa os limites do constitucionalismo tradicional, de corte liberal, albergando na Lei Maior um extenso elenco de direitos fundamentais, bem como incorporando, através dos princípios, opções valorativas e, por meio de diretrizes, compromissos políticos.

Já o amadurecimento de nossa cultura jurídica fez com que - como de hábito em países periféricos - passássemos a acompanhar atentamente as mais recentes tendências no âmbito doutrinário norte-atlântico. Neste sentido, os juristas de nosso país não puderam se colocar à margem do enorme debate teórico travado no âmbito do direito constitucional (com a presença maciça de influxos jusfilosóficos), principalmente na Península Ibérica, na Alemanha e nos E.U.A. Este debate tem como um de seus elementos cardeais o reconhecimento da centralidade dos princípios de direito na autocompreensão contemporânea dos sistemas jurídicos avançados.

Na doutrina constitucional brasileira, esta nova constelação teórica, que reconhece ser a estrutura normativa composta de regras e princípios, foi primeiramente exposta, como já destacado, por Paulo Bonavides, apontando Ronald Dworkin e Robert Alexy10 como seus principais protagonistas. Para descrever essa nova configuração nosso venerando constitucionalista utilizou o termo "pós-positivista". A utilização desta rubrica se justificou na medida em que a incorporação dos princípios jurídicos e dos valores a eles atrelados implicou o abandono de uma das características principais do paradigma do positivismo jurídico - a não-conexão necessária entre direito e moral. Não se poderia continuar a descrever a situação atual do pensamento jurídico, em especial em sede constitucional, a partir da linguagem teórica positivista, posto que o reconhecimento da juridicidade dos princípios causa espécie à grade de inteligibilidade do fenômeno jurídico proposta por esse enfoque teórico. Com efeito, como afirma Zagrebelsky, "segundo a mentalidade do positivismo jurídico, as normas de princípio, ao conter fórmulas vagas, referências a aspirações ético-políticas, promessas não realizáveis pelo momento, esconderiam um vazio jurídico e produziriam uma 'contaminação Page 6 das verdadeiras normas jurídicas com afirmações políticas, proclamações de boas intenções etc."11 Ademais, a doutrina jurídica contemporânea pode afirmar que afinal "é difícil encontrar uma acomodação para os valores e princípios nos esquemas tradicionais mais ou menos herdados do positivismo. As mais genuínas normas constitucionais carecem com freqüência de determinação fática ou determinação jurídica, quando não de ambas."12

As considerações que gostaria de expor têm relação com as conseqüências jusfilosóficas13 acarretadas pela inclusão nos textos constitucionais contemporâneos de vários standards morais, na forma de princípios, valores e direitos fundamentais, já que tais standards realizam uma plasmação jurídica de conteúdos de natureza moral nos ordenamentos jurídicos hodiernos. Tal incorporação coloca em xeque elementos básicos do paradigma jurídico dominante até o fim dos anos 60, o positivismo jurídico. Pensemos, por exemplo, no fato de que nas constituições contemporâneas "(...) contra as...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT