Niklas luhmann e o direito da sociedade

AutorBruno Heringer Júnior
Páginas89-123
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Revista da Faculdade de Direito da FMP – nº 9, 2014, p. 89-123
NIKLAS LUHMANN E O DIREITO DA SOCIEDADE:
a função do sistema jurídico-penal
Bruno Heringer Júnior
Sumário: Introdução. I. A teoria sistêmica de Niklas Luhmann. A) Forma. B) Autopoiese e fechamen-
to operacional. C) Acoplamento estrutural. D) Complexidade. E) Paradoxo. F) Risco. II. O Direito da
sociedade. III. A função do sistema jurídico-penal. Considerações nais. Referências bibliográcas.
Resumo: A complexidade da sociedade contemporânea não mais pode ser descrita pelas catego-
rias da análise sociológica clássica, razão pela qual Luhmann propõe substituí-la pela teoria dos
sistemas sociais, que conduz à análise funcional, a partir de novos conceitos como os de forma,
autopoiese, fechamento operacional, acoplamento estrutural, complexidade, paradoxo e risco, que
conferem uma feição própria à teoria. O sistema jurídico constituiria apenas um subsistema social
diferenciado evolutivamente para a função de asseguramento de expectativas normativas. Espe-
cializado ainda mais, ao sistema jurídico-penal cumpriria manter a identidade básica da sociedade,
contra as defraudações dirigidas a pessoas, a outros subsistemas funcionais e mesmo ao próprio
Direito Penal – aqui relativamente às estruturas de legitimidade, formais e materiais, que institui para
seu adequado operar. A abordagem sistêmica, devido a seu elevado grau de abstração e caráter
interdisciplinar, permite uma observação e uma descrição mais completa da sociedade e de seus
subsistemas funcionais, inclusive o jurídico-penal, de modo a denirem-se as possibilidades e os
limites do Direito Penal em um mundo impregnado de incerteza.
Palavras-chave: Teoria sistêmica. Sociedade. Direito Penal.
Introdução
Em vista da complexidade da sociedade contemporânea, o arsenal te-
órico da Sociologia clássica mostrou-se insuciente para uma descrição mais
ampla1 e, até mesmo, tem-se constituído num obstáculo epistemológico.2
Esgotado o potencial explicativo do saber tradicional, somente uma nova abor-
dagem, com alto grau de abstração e caráter interdisciplinar, pode vir a suprir
as carências vericadas. A obra de Niklas Luhmann, assim, pretende contribuir
para a elaboração de uma nova teoria de descrição da sociedade, a qual é por
ele mesmo denida como radicalmente anti-humanista, radicalmente antirregio-
nalista e radicalmente construtivista.3
1 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Cidade do México: Editorial Herder-Universidad
Iberoamericana, 2007. p. 17.
2 Ibidem, p. 11.
3 Ibidem, p. 20.
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Para um novo modo de observar a realidade, Luhmann propõe-se partir
da teoria dos sistemas, único meio de analisar a sociedade como um todo e
revelar seus paradoxos e riscos. Pela ousadia da construção intelectual e pelo
rompimento radical com muitos dos postulados já consolidados, tal abordagem
já foi considerada “escândalo”4, congurando, verdadeiramente, um rompi-
mento paradigmático incontrastável.
Apesar disso, muito da resistência que a teoria dos sistemas sociais sofre
decorre, talvez, de sua incompreensão5, porquanto pressupõe ingresso em um
modo completamente diverso de observar e descrever a sociedade, em que,
segundo Jean Clam, “até mesmo os mais esforçados e os iniciados não estão
muito certos de terem captado corretamente as abstrações com que a teoria lida
incessantemente”.6 Pensar sistemicamente é, aliás, pensar a complexidade, a
instabilidade e a intersubjetividade.7
O presente texto, assim, mesmo afetado pela diculdade de articular a in-
nidade de informações que pressupõe, pretende explorar os rendimentos teóri-
cos da abordagem luhmanniana na análise da função do sistema jurídico-penal,
em busca de dimensões inusitadas do problema, que talvez possam servir de
fundamento crítico para a determinação de seu efetivo operar, bem como para
a descoberta de eventuais equivalentes funcionais.8
I. A teoria sistêmica de Niklas Luhmann
Sistemas existem. Esse é o ponto de partida de Niklas Luhmann, de
modo que sua teoria é sistêmica não apenas quanto ao padrão de análise, mas
também relativamente a seu objeto9, o que permite a sua decomposição em
três níveis distintos: uma teoria geral dos sistemas, uma teoria dos sistemas
sociais e uma teoria do sistema da sociedade.10
4 IZUZQUIZA, Ignacio. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoría como escándalo.
Barcelona: Anthropos, 1990. p. 77-91.
5 TREVES, Renato. La Sociología del Derecho: Orígenes, investigaciones, problemas.
Barcelona: Editorial Ariel, 1998. p. 219.
6 CLAM, Jean. Questões fundamentais de uma teoria da sociedade: contingência, paradoxo,
só-efetuação. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. p. 9.
7 VASCONCELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da
ciência. 6. ed. Campinas: Papirus, 2002. p. 147.
8 GIMÉNEZ ALCOVER, Pilar. El derecho en la teoría de la sociedad de Niklas Luhmann.
Barcelona: J. M. Bosch Editor, 1993. p. 53-57.
9 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Barcelona:
Anthropos; Cidade do México: Editorial Herder-Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá:
Ponticia Universidad Javeriana, 2005. p. 37.
10 LUHMANN, Niklas; GIORGI, Raffaele de. Teoria della societá. 8. ed. Milano: Franco Angeli,
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A teoria geral dos sistemas apresenta natureza interdisciplinar, porquanto
a ideia de sistema pode ter aplicação a distintos campos do saber: Biologia, Psi-
cologia, Sociologia, Cibernética etc. Com efeito, a noção de sistema que adota
Luhmann – ao menos em sua última formulação – muito deve aos avanços da
matéria em outros campos, como revelam algumas de suas mais importantes
referências bibliográcas: Maturana e Varela, Ashby, von Foerster, Gunther, von
Bertalanffy, Darwin, Gehlen, Zeleny, Rapoport, Piaget, Spencer Brown.
A ideia de que parte é a de sistemas autorreferentes, ou seja, sistemas
capazes de estabelecer relações consigo mesmos e de diferenciar essas rela-
ções das relações com o seu ambiente.11 Os sistemas constituem-se ao esta-
belecer, através de suas operações internas, uma diferença relativamente ao
entorno, sendo isso o que torna possível a sua distinção.
Os sistemas sociais particularizam-se por terem como elemento a comu-
nicação, através da qual realizam sua autopoiese: somente comunicação gera
comunicação, apesar de pressupor um substrato de materialidade oriundo dos
sistemas biológico e psicológico. Os sistemas sociais estruturam-se com base
em um código binário, através do qual operam conferindo sentido aos eventos.
A comunicação pode ser denida como a unidade da diferença entre in-
formação, ato de informar e compreensão; são eventos dotados de sentido com
valor comunicativo. Toda comunicação é produto de uma decisão, a qual gera
uma diferença redutora da complexidade do mundo, signicando uma atualiza-
ção especíca perante possibilidades múltiplas. Através da comunicação, um
sistema social encontra-se aberto ao ambiente, observando-o, ou seja, trans-
formando o que não é comunicação (vida orgânica, consciência, máquinas, ele-
mentos químicos etc.) em tema da comunicação. As comunicações individuais
produzem-se por uma rede recursiva de comunicações, sendo a sua continuida-
de o que possibilita a autorreprodução dos sistemas sociais.12
Os sistemas sociais podem ser observados nas interações, nas organiza-
ções e na sociedade.13 Este – o sistema da sociedade – é tido como o sistema
oniabarcador de todas as comunicações possíveis: são somente comunicações
– mas todas as comunicações – que contribuem à autopoiese da sociedade.
Desse modo, não reconhece outros sistemas além de suas fronteiras e, por
1996, p. 24-25.
11 LUHMANN, Niklas. Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Barcelona: Ediciones Paidós,
1997. p. 44.
12 CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Claudio. Glosario sobre la teoría social de
Niklas Luhmann. Cidade do México: Anthropos, 1996. p. 47.
13 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales, p. 27.
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