Normativismo, hermenêutica e teorias sistêmicas: uma aproximação inicial da teoria autopoiética e sua visão sobre as matrizes do Direito - Vislumbre de possibilidades e limitações

AutorMoacir Camargo Baggio
Páginas25-44

Moacir Camargo Baggio. Juiz Federal. Especialista em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUC/RS e Mestrando em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões-URI/RS.

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1 Considerações iniciais: reconhecimento da hipercomplexidade da sociedade contemporânea em transição e da necessidade de estudo crítico do Direito e da Sociedade Um método paradoxal de busca de uma inicial imparcialidade necessária para a abordagem do problema: descrevendo as observações de índole sistêmica sobre matrizes teóricas do Direito e suas possibilidades

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Reconhecimento da hipercomplexidade da sociedade contemporânea em transição e da necessidade de estudo crítico do Direito e da Sociedade. Um método paradoxal de busca de uma inicial imparcialidade necessária para a abordagem do problema: descrevendo as observações de índole sistêmica sobre matrizes teóricas do Direito e suas possibilidades.

São inquestionáveis as extraordinárias e profundas mudanças havidas no mundo e nas relações sociais no curso do último século e, mais particularmente e talvez com ainda maior intensidade e rapidez, das últimas décadas1. A realidade de uma sociedade que se tornou infinitamente mais complexa num período de tempo relativamente curto para tanto2, mercê, por exemplo, da incrível aceleração de um não menos complexo fenômeno de globalização3, está hoje amplamente evidenciada, tanto pelas ocorrências do quotidiano de cada um, quanto pelo elaborado universo das constatações acadêmicas4. A diversidade de valores, culturas, religiões, etnias e até individualidades postas em pressionado contato, de forma cada vez mais estreita e inescapável, pelo atual "apequenamento" de um mundo interligado por veloz informação e homogeneizados interesses (principalmente econômicos), causa estranhamentos inevitáveis. Como conseqüência, recrudescem conflitos intersubjetivos nascidos da "diferença"5, bem como eclodem novas disputas, antes ausentes6, entre indivíduos ou grupamentos humanos com valores, crenças ou objetivos de vida distintos - seja porque tais grupos ou indivíduos não se encontravam antes premidos pelas circunstâncias, seja porque se mantinham distanciados por formas de relativo isolamento hoje não mais possíveis (dentre outras plausíveis razões). E tudo, atente-se, quando, justamente em razão do próprio fenômeno da transnacionalização da sociedade, as possibilidades de ação efetiva de um Estado soberano sobre esta realidade parecem se reduzir7 - nada obstante esse processo de agigantamento das demandas dirigidas a ele.

Tudo isso permite asseverar, então, com boa margem de segurança, que nos dias que correm tampouco há espaço para que se tenha qualquer dúvida razoável acerca das inevitáveis e marcantes conseqüências dessas amplas e radicais transformações para o Direito. A atestar indelevelmente essa realidade, marcadas crises de efetividade e de legitimidade estão aí a aflorar claramente ante os olhos de todos, quando se trata de tentar buscar uma adequada regulação das relações sociais atuais e resolução dos conflitos nelas havidos mediante a utilização de uma visão e de um instrumental tradicional do Direito.

É nesse contexto, pois, que se põe a necessidade de rediscutir criticamente os modos de observação da sociedade, o Direito propriamente dito, no que tange às suas possibilidades e limitações, bem como seu real e efetivo papel nessa nova e complexa ordem social.

Seria o caso, portanto, de, a rigor, se realizar um amplo estudo de identificação e de revisão crítica das visões ou pretensões de cada matriz teórica do Direito que hoje estejam à disposição de seus operadores e dos juristas para fins de enfrentamento da realidade descrita.

Como não há espaço para se levar a cabo uma tal hercúlea tarefa no âmbito restrito de um ensaio como o presente, aqui se propõe que esse trabalho de identificação de matrizes e de futura revisão crítica seja apenas insinuado a partir de algumas bases iniciais. Sugere-se como suficiente para o momento apenas um início de abordagem de tal problemática. E isso, por meio de um modesto esforço de simples descrição de algumas proposições tendentes ao equacionamento destas dificuldades.

Para tanto, a ideia é de que primeiro se busque precisamente reconhecer e individuar claramente a existência de algumas matrizes teóricas do Direito que hodiernamente se apresentam como verdadeiros pressupostos para a compreensão e tratamento adequado de toda essa problemática - vez que até mesmo essa necessidade elementar encontra-se hoje obscurecida nos debates sobre esse tema. Depois, seria o caso de se abordar, ainda que muito perfunctoriamente, os contornos mínimos de tais matrizes e sua forma de inserção e adequação nessa realidade de uma contemporaneidade em turbulenta transição.

Entretanto, mesmo com a redução das pretensões da investigação pela iniciativa de primordialmente privilegiar meras descrições de matrizes e seu modo de inserção na realidade social, esbarra-se, nesse passo, num sério problema: o fato de que toda a descrição é mediada pelos necessários e inafastáveis compromissos ideológicos de quem descreve. Uma necessária imparcialidade mínima de um investigador que pretenda verdadeiramente se abrir ao conhecimento das possibilidades das distintas matrizes, a partir do método de privilegiar sua pura descrição, então, parece ser inapelavelmente perdida.

Nesse passo é que surge a ideia de um método investigativo algo inusitado. Porque não partir da pura e simples descrição de investigação acerca do tema feita por estudioso declaradamente afiliado a uma determinada matriz teórica? Se com isso parece se abrir a possibilidade inicial de uma pura e simples descrição, para futuras investigações próprias de índole mais crítica, inclusive, mediante a devida contraposição de estudos similares de juristas afetos às demais matrizes teóricas?

Logo, a nova proposição para abordar o tema e prosseguir na dita investigação com o máximo de imparcialidade possível, passa a ser a seguinte: parte-se, nesse escrito, de um fragmento do trabalho de observação de renomado estudioso do tema que claramente elege uma das possíveis matrizes teóricas do Direito (a pragmático-sistêmica, como se verá), filiando-se expressamente a uma teoria a ela vinculada (aPage 27 teoria do sistema autopoiético do Direito), como proposta preferencial para encaminhar soluções no campo desta problemática. Adotam-se textos-base do referido autor que são, na medida do possível, apenas apresentados de forma descritiva, para que então se construam as condições de possibilidade de futuramente realizar exames críticos em nível mais aprofundado dessa teoria e dessa matriz que lhe dá base, bem como das teorias e matrizes distintas que dela divergem ou que nela encontram algum ponto de contato. Cria-se, como se vê, um ponto de apoio inicial para a discussão da questão das matrizes teóricas do Direito e das possibilidades de enfrentamento da hipercomplexidade do mundo contemporâneo a partir do afiliamento de determinadas teorias a uma ou outra destas matrizes e seus necessários antecedentes e consequentes teóricos.

Por paradoxal que possa parecer, com um tal método ganha-se em termos de necessária imparcialidade investigativa inicial, vista aqui como a busca da suspensão temporária de preconceitos para fins de abertura necessária às razões de toda e qualquer teoria, porque assumidamente se abre a oportunidade de ver a dita matriz e a dita teoria defendidas por um de seus reconhecidos conhecedores, mantendo-se, ao mesmo tempo, o distanciamento necessário de quem aqui se propõe apenas a descrever uma das possíveis propostas para enfrentar as dificuldades da chamada modernidade tardia (ou pós-modernidade, como querem outros).

É por isso, então, que o que segue nada mais é do que uma tentativa de resumir e concatenar razões apresentadas essencialmente nos trabalhos intitulados "Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico" (parte inicial do livro "Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito") e "Observações sobre autopoiese, normativismo e pluralismo jurídico", ambos publicados pelo Professor Doutor Leonel Severo da Rocha, naquilo que disser respeito ao tema delimitado anteriormente. Os referidos textos dão a base inicial para, primeiro, a apresentação das atuais matrizes teóricas do Direito de relevo, no sentir desta visão comprometida com as ideias sistêmicas - o que é feito de modo mais ostensivo no ponto seguinte -, e, depois, para um olhar do teórico do sistema autopoiético do direito sobre as dificuldades e desafios que se apresentam atualmente às...

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