Nota dos coordenadores

AutorGuilherme Magalhães Martins e João Victor Rozatti Longhi
NOTA DOS COORDENADORES
A REGULAMENTAÇÃO DA INTERNET NO BRASIL, MARCO CIVIL
(LEI Nº 12.965/14), LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LEI Nº 13.709/18)
E A INTERPRETAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO
De muitas formas, a Internet conseguiu tornar-nos novamente habitantes de uma
pequena vila.1 Ninguém mais é um estranho, mesmo na “vila” da Internet, onde os cida-
dãos instruídos deveriam saber como processar a informação, participando, de maneira
democrática e colaborativa, das suas mais variadas ferramentas de comunicação.
Inserida na consolidação de uma sociedade da informação, a regulamentação dos
aspectos civis da Internet no Brasil caminha. Mais do que simplesmente adaptar seus
institutos e conceitos à mudança social que acompanha a revolução tecnológica, o Di-
reito Privado, em não raras ocasiões, deve promover soluções para problemas contem-
porâneos por meio de categorias consagradas pelo costume, pelas normas sociais e pela
arquitetura da Internet.2
O Direito Civil abraça o desaf‌io da contemporaneidade, de modo que temas que há
décadas sequer integravam a agenda jurídica passam a exigir regulamentação.
Inteligência artif‌icial, desinformação, vazamentos de dados em massa são facetas
desse novo mundo que revelam a dimensão dos desaf‌ios do direito doravante. Há anos,
se notif‌icou a concessão de cidadania a um robô, ainda que simbolicamente e, recente-
mente, noticiou-se a patente um de suposto sistema de mensageria (chatbox) emulando
conversas com pessoas falecidas,3 A atribuição ou não de capacidade de fato ou de direito
a robôs poderá vir a integrar a agenda civilista dos próximos anos, tal como a titularização
de situações jurídicas Af‌inal, um dia talvez os robôs tenham direitos, mas urge saber se
terão responsabilidades.
O desenvolvimento da computação em uma rede aberta ou em um conjunto de redes
que atravessam todo o planeta, como a Internet, trouxe novos desaf‌ios aos operadores
do direito. Inicialmente, o computador se destinava apenas a automatizar e expandir as
1. LEVMORE, Saul; NUSSBAUM, Martha. Introduction. In: LEVMORE, Saul; NUSSBAUM, Martha. The offensive
Internet. Cambridge: Harvard University Press, 2010. p. 1 (tradução nossa).
2. Encontra-se na obra do pesquisador norte-americano Lawrence Lessig a expressão “code” enquanto fonte nor-
mativa regulamentadora no espaço virtual. Em sua obra paradigmática, o professor da Universidade de Stanford
af‌irma, inicialmente, que há quatro meios de se reger comportamentos e normatizar condutas: a lei, entendida
como todo o conjunto normativo estatal ou emanado por uma autoridade superior; as normas sociais, que não só
os usos e costumes, mas qualquer situação contingencial de conduta predeterminada em determinada comunidade;
o mercado, como mecanismo de acesso a bens econômicos; e, por derradeiro, a arquitetura, ou seja, o aspecto
estrutural de como as coisas funcionam e ocorrem. Code and other laws of cyberspace. New York: Basic Books,
1999. p. 43 (tradução nossa).
3. TECHMUNDO, Black Mirror? Microsoft patenteia chatbot que simula entes falecidos. 23/01/2021 às 13:00.
Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/produto/209867-black-mirror-microsoft-patenteia-chatbot-si-
mula-entes-falecidos.htm.. Acesso em: 24 jan. 2021.
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DIREITO DIGITAL • DIREITO PRIVADO E INTERNET
XXII
práticas informacionais já existentes, tanto no setor público como na iniciativa privada.
No estágio atual, as redes deram aos particulares o acesso a poderes na área da computa-
ção que anteriormente eram reservados apenas aos governos, razão por que é premente
a necessidade de atribuição de limites aos poderes privados neste ambiente digital.4
Surgem novos interesses e posições jurídicas, tanto patrimoniais quanto existenciais,
insuscetíveis de serem tratadas com base nos paradigmas do passado. O grande desaf‌io
é conciliar a rapidez da evolução tecnológica com a liberdade dos usuários, marcante
no desenvolvimento da Internet.5
Como as leis naturais da física, a arquitetura da Internet determina os espaços onde
se podem elaborar e estabelecer políticas públicas.6 Entretanto, as leis da física não são
feitas pelo homem, que apenas as reconhece, enquanto a arquitetura do espaço virtual é
obra humana, tendo sido elaborada sob o manto da autonomia e liberdade de expressão
dos seus criadores, que não pode sobrepujar os valores fundamentais ligados à pessoa
humana, em especial a sua dignidade (art. 1º, III, Constituição da República).
A regulamentação civil da Internet deve levar em conta suas características fun-
damentais, como a desterritorialização e desmaterialização, em se tratando de uma das
facetas mais marcantes da globalização.7
O Marco Civil def‌iniu os direitos e responsabilidades dos cidadãos, empresas e go-
verno na web, tendo a sua minuta de anteprojeto sido inicialmente submetida à discussão
pública, consoante os valores democráticos e participativos que sempre marcaram o
desenvolvimento da Internet, sobretudo a partir dos anos 70.
No tocante ao Marco Civil, dentre os fundamentos da disciplina do uso da Internet
no Brasil, da abertura e colaboração (art. 2º., IV), bem como da livre iniciativa, libre
concorrência e defesa do consumidor (art. 2º., V) ensejam novas formas de prestação
de serviços, como Uber, Airbnb e tantos outros modelos de negócios já consolidados
nesta seara tecnológica.
Apresentado à população como uma “Constituição da Internet”8, o Marco Civil
traz mais problemas do que soluções, enunciando como tríplice vertente a preservação
4. LLOYD, Ian. Information Technology Law. 2. ed. London: Butterworths, 1997. p. XXXIX.
5. EDWARDS, Lilian; WAELDE, Charlotte. Introduction. In: EDWARDS, Lilian; WAELDE, Charlotte. Law & The
Internet; regulating cyberspace. Oxford: Hart, 1997. p. 8 (tradução nossa).
6. KLEINWÄCHTER, Wolfgang. Internet Co-Governance; towards a Multilayer Multiplayer Mechanism of Con-
sultation, Coordination and Cooperation (M3C3). Consulta Informal do Grupo de Trabalho sobre a Governança
da Internet (GTGI), v. 2.0. Genebra: 2004.
7. Nas palavras de José Eduardo Faria, “Ao propiciar o advento do tempo real, a revolução das técnicas de comu-
nicação ´diminuiu´ o mundo, tornando-o mais independente. Dito de outro modo, tornou-o mais integrado do
ponto de vista econômico, porém mais fragmentado do ponto de vista político, na medida em que abriu caminho
para modos inéditos de comunicação e de transmissões culturais instantâneas e permanentes entre polos bastante
longínquos, levando a proximidade física entre os indivíduos a ser progressivamente substituída pelos efeitos
interativos das redes tecnológicas de interligação no tempo e no espaço”. FARIA, José Eduardo. Informação e
democracia na economia globalizada. In: SILVA JUNIOR, Ronaldo Lemos; WAISBERG, Ivo (Org.). Comércio
eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 20.
8. Vale transcrever a observação crítica de Lenio Streck: “(...) A nova lei está sendo apelidada de ´Constituição da
Internet´ ou ainda ´Carta dos Direitos do Século XXI´. Estaríamos, então, diante do cyberconstitucionalismo? Esta
situação é minimamente questionável numa realidade de baixa constitucionalidade como a brasileira.
Ironicamente, como se pode notar, a famigerada ´era dos princípios´, que propiciou o surgimento de leis com
características sociais-diretivas, encontra – mormente todas as críticas – um imaginário jurídico ainda fortemente
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