A lei de responsabilidade fiscal - Notas essenciais e alguns aspectos da improbidade administrativa

AutorProf. Marcelo Figueiredo
CargoAdvogado e Consultor Jurídico em São Paulo. Professor Assistente Doutor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Páginas1-15

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Preliminarmente, gostaria de agradecer o honroso convite dos organizadores da "Conferência Nacional sobre Improbidade Administrativa e a Lei de Responsabilidade Fiscal"1. Antes de ingressarmos no tema da improbidade e suas relações com a responsabilidade fiscal é imprescindível uma visão geral da lei e seu contexto no cenário jurídico-político brasileiro. É o que faremos a seguir.

República, já dizia o saudoso Professor Geraldo Ataliba2, é "o regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente e mediante mandato renováveis periodicamente".

O mestre de todos nós marcava como características da república a eletividade, a periodicidade e a responsabilidade. Esta última que maior conexão tem com o tema que pretendemos desenvolver. Regime republicano é regime de responsabilidade. Todos os agentes públicos devem responder por seus atos. Page 2

A histórica passagem do Estado irresponsável ( the king can do no wrong) ao regime da responsabilidade foi lenta e árdua. Basta uma rápida visita por nossa Constituição para confirmarmos tais conquistas. O regime de responsabilidade é nota característica do Direito, da República, da Cidadania.

A Lei de Responsabilidade Fiscal encarta-se neste cenário. Pretende reforçar os mecanismos de responsabilidade na gestão administrativa dos "dinheiros públicos", aumentar em quantidade e qualidade o controle financeiro de bens, recursos e dispêndios públicos.

O tema é antigo. Os ajustes novos. Da Magna Carta de João Sem Terra à Constituição Imperial brasileira de 1824, do Código de Contabilidade Pública de 1922 à Constituição de 1988, nenhuma novidade há em termos da previsão jurídica de responsabilidade dos agentes públicos no trato do dinheiro público. Ela sempre existiu enquanto norma jurídica e raramente existiu enquanto prática real e efetiva.

Leis jamais nos faltaram. Os principais diplomas são, ao lado das Constituições Brasileiras, o Código de Contabilidade da União, Decreto n.º 4.536, de 28-1-1922, regulamentado pelo Decreto n.º 15.783, de 8-11-1922; a Lei 4.320, de 17 de março de 1964, esta última, de boa qualidade técnica, mas também com o tempo, insuficiente para, sozinha, conter a irresponsabilidade fiscal3.

Finalmente, ainda à guisa de introdução, não poderíamos deixar de registrar que o problema tem uma vertente cultural. A tolerância histórica à política do "rouba mas faz"4, associada à dificuldade do tema- finanças públicas- tecnicamente hermético e complexo5, colaboram para o status quo.

A Constituição cidadã de 1988 procurou reverter esse quadro. Dedicou um Capítulo à matéria6 (artigo 163 a 169), ampliou o controle dos Tribunais de Contas7 e do Ministério Público8. Entretanto, após 88, também encontramos Page 3 notáveis exemplos de corrupção na gestão do dinheiro público. Escândalos como o dos "anões do orçamento", "precatórios", "TRT-SP" e tantos outros, demonstram que muito há a ser feito para o controle prévio e concomitante9 da gestão dos recursos públicos.

O entendimento global do fenômeno, a consciência do problema, a participação social e a transparência na tomada de decisões do administrador em matéria fiscal, parecem ser componentes indispensáveis para enfrentar essa realidade.

É preciso que o cidadão compreenda que a decisão do Prefeito de v.g. construir essa ou aquela obra pública, dar prioridade a esse ou aquele projeto, não diz respeito somente à sua Administração ou ao projeto político de seu partido, mas sobretudo à coletividade administrada. A sociedade deve ser coresponsável no sentido de ser ouvida para o emprego e gestão dos recursos públicos.

Nesse cenário veio a lume a lei de responsabilidade fiscal. A lei, enquanto projeto, ao que se saiba, foi razoavelmente discutida por vários segmentos sociais, recebeu inúmeras sugestões de vários setores e passou por várias audiências públicas. O resultado técnico, entretanto, não foi animador.

A Lei de Responsabilidade Fiscal é um texto longo, complexo, intrincado, vazado em uma linguagem hermética, com dezenas de remissões. É, em síntese, imperfeita e imprecisa. Será necessário muito esforço para compreendê-la. Esse não é um bom sinal, ao menos para a didática e simplicidade que a matéria requer.

Já seu conteúdo, seu propósito, é elevado. Deseja-se que o comportamento do administrador público de Norte à Sul do País10 seja Page 4 responsável, consciente, probo, equilibrado. Propósitos indiscutivelmente elogiáveis11, mas que não serão atingidos ausente uma assessoria técnica que possa viabilizar a aplicação de seus dispositivos, sobretudo nos Municípios pequenos, a grande maioria neste imenso Brasil.

O orçamento, a par de seu conteúdo jurídico, sempre teve uma vertente política. Anota Baleeiro12: "quanto mais um regime se afasta do ideal do Estado-de-Direito, tanto menos o Parlamento decide do conteúdo do orçamento público, da tributação e das despesas". E mais adiante " era sobretudo um dique para conter as despesas e, consequentemente, deter o apelo à tributação13".

O orçamento, por essas razões, floresceu em sua primeira fase, como processo de fiscalização financeira e cerceamento das tendências perdulárias de governantes dissociados dos interesses gerais das massas. Estabelecido para cada ano, forçava o rei à convocação periódica e regular dos representantes em parlamento14 ". O mesmo autor nos oferece as sucessivas evoluções do tema, até o orçamento- programa.

Pois bem, seria impossível comentar toda à lei em um singelo artigo. Não é esse nosso propósito. Tentaremos trazer à colação aquilo que nos pareceu fundamental.

Dois conceitos fundamentais da lei de responsabilidade fiscal devem ser trazidos desde logo: o planejamento e a transparência. O artigo 1º, inciso I, não deixa dúvidas no intérprete. Ambos são vigas mestras na nova lei.

Art.1º .........................

§ 1º. A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de Page 5 crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar". (grifamos).

A idéia de planejamento no Direito Público15 e mesmo na Administração Pública16 não é nova, mas vêm carregada de uma nova dimensão na LRF. Ela tem um conteúdo forte. A lei em várias passagens encarece a necessidade do administrador de PLANEJAR, no sentido de prever ações, projetar situações, diagnosticar com precisão o que deseja, o que dispõe, inclusive em termos de recursos públicos, e como deverá concretamente alcançar as metas delineadas17.

A preocupação com o planejamento18 está plasmada por toda a lei. Ainda que o termo não apareça em outros dispositivos, a interpretação do conjunto da lei não deixa dúvidas. Sem um planejamento econômico e financeiro bem estruturado, nenhum administrador público conseguirá cumprir os objetivos e a teleologia da lei.

Os inúmeros instrumentos que a lei institui, na verdade procuram materializar o comando do planejamento responsável . Não é por outra razão que um dos instrumentos mais importantes da lei de responsabilidade fiscal são os inúmeros relatórios e anexos dela constantes, notadamente o denominado "Relatório de Gestão Fiscal 19". Este, como todos os outros20, somente se justificam e se explicam como instrumentos de acompanhamento contínuo do gerenciamento dos recursos públicos.

Do mesmo modo, não se concebe o anunciado planejamento, ausentes os três instrumentos legais previstos na Constituição Federal, estes, aliás, que fundamentam o conceito nuclear de planejamento- as leis orçamentárias: o plano plurianual 21, a lei de diretrizes22 e o orçamento anual23. A segunda, de marcada importância para a lei de responsabilidade fiscal. Page 6

Em apertada síntese, podemos dizer que o plano plurianual corresponde ao desdobramento do orçamento-programa (artigo 165, § 1º da CF); é norma definidora do planejamento das atividades governamentais.

A lei de diretrizes orçamentárias- anual- (artigo 165, § 2º da CF), compreende as metas e prioridades da Administração. E, por fim, o orçamento anual, compreendendo o fiscal, de investimento e da seguridade social.

Ao lado do planejamento responsável, a lei alude a transparência, também conceito novo, que vêm dar maior elasticidade ao princípio da publicidade, garantia constitucional. Do modo em que inserida na lei, a transparência surge não somente como imperativo, como também com o objetivo de informar a decisão do Administrador.

Deveras, o Capítulo IX, intitulado "Da Transparência, Controle e Fiscalização" contempla os artigos 48 e 49 assim redigidos:

"Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.

Parágrafo único. A transparência24 será assegurada também mediante incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e de discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos.

Art. 49. As contas apresentadas pelo Chefe do Poder Executivo ficarão disponíveis, durante todo o exercício, no respectivo Poder Legislativo e no órgão técnico responsável pela sua elaboração, para consulta e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade.

Parágrafo único. A prestação de contas da União conterá...

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