Notas sobre a política de produtividade em pesquisa no Brasil: Consequências para a vida acadêmica, a ética no trabalho e a saúde dos trabalhadores

AutorMadel Therezinha Luz
CargoSocióloga, doutora em Ciência Política pela USP, professora titular do Instituto de Medicina Social da UERJ, professora titular aposentada de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ
Páginas205-228
Dossiê
Notas sobre a política de
produtividade em pesquisa no Brasil:
Consequências para a vida
acadêmica, a ética no trabalho
e a saúde dos trabalhadores
Madel T. Luz*
1. Trajetória de uma reflexão
Este artigo situa-se na seqüência de alguns trabalhos, frutos de
atividades de pesquisa sociológica desenvolvidas há uma década,
sobre a busca de cuidados e práticas de saúde, suas possíveis rela-
ções com o regime de trabalho no capitalismo atual, e de reflexões
sobre conseqüências sociais da política educacional e de ciência e
tecnologia brasileira relativas ao ensino superior, especificamente
de pós-graduação (LUZ, 2003, 2004a 2004b, 2005b, 2007).
Nos três últimos (LUZ, 2005a, 2005b, 2007) discutimos a
subordinação progressiva do ensino superior, ao longo dos últimos
vinte anos, sobretudo no que tange o setor da formação em pós-
graduação, à política do desenvolvimento tecnológico e científico
do país, o regime social e ético de trabalho implicado nesta subordi-
nação e as possíveis conseqüências para a saúde dos trabalhadores:
docentes e pesquisadores.1
O ponto de partida dessas reflexões, situadas antes do início
desta década, foi nossa perplexidade com a constatação empírica
dos seguintes fenômenos: a) a busca crescente de cuidados e prá-
ticas de saúde ditos “alternativos” na população como um todo
* Socióloga, doutora em Ciência Política pela USP, professora titular do Insti-
tuto de Medicina Social da UERJ, professora titular aposentada de Sociologia
do Instituto de Filosofia e C iências Sociai s da UFRJ. End ereço eletrônico :
madelluz@superig.com.br.
1 Reconhecemos que o travessão ou o hífen seriam grafias mais adequadas à situ-
ação atual dos professores de universidade. O uso da conjunção “e” (docentes e
pesquisadores) é intencional. Visa a ressaltar a função fim principal da universidade,
isto é, o ensino, mesmo o ensino canônico. A pesquisa deve ser a fonte do ensino.
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Nº 13 – outubro de 2008
(LUZ, 1997, 2003), mas predominantemente no segmento social
com educação superior, inclusive entre trabalhadores acadêmicos,
especialmente os da área da saúde;2 b) o também crescente adoeci-
mento dos profissionais da atenção médica: médicos, enfermeiros,
e técnicos ligados à atenção, compatível com a demanda explosiva
de cuidados médicos (LUZ, 2004a, 2005a); c) o processo social
que denominamos, em homenagem à obra clássica dos anos 70
do filósofo e teólogo Ivan Ilich (ILLICH, 1975), de “nova onda de
medicalização da vida” (LUZ, 2003), em desenvolvimento desde os
anos 90, a partir da qual as biociências e as neurociências tendem
a normatizar as transformações biopsíquicas no curso da vida das
pessoas3, vistas no período moderno como fazendo parte da natu-
reza humana (LUZ, 2004b). O desconforto com mudanças nas fases
da vida, os adoecimentos no decurso da existência, ou mesmo as
manifestações ocasionais de insatisfação com o viver individual
ou grupal, expressas em mudanças de humor, como tristeza e
depressão, ou mesmo seus contrários, são vistos como desvios de
parâmetros cada vez mais estritos de normalidade, cada vez mais
precocemente aplicados aos indivíduos; e esses desvios, reduzidos
a sintomas localizáveis em zonas do cérebro, “tratáveis” de forma
preventiva ou curativa. As biociências adotam, assim, a perspectiva
de uma utopia, a utopia da saúde (SFEZ, 1996).
Sociologicamente, interpretamos a marcha deste avanço
científico, que denominamos nova onda de medicalização, como um
2 Provavelmente a presença marcante deste segmento social é devida à acessibili-
dade das práticas de cuidado em saúde ditas alternativas, ou complementares,
às camadas médias educadas da população, em função do capital simbólico
e material de que dispõem, possibilitando escolha terapêutica ou preventiva.
Uma indicação neste sentido é o sucesso dessas práticas quando implantadas
em programas do Sistema Único de Saúde ou em universidades, para onde
convergem as camadas mais desprovidas de recursos (materiais, simbólicos).
Existem até mesmo associações de pacientes em defesa da preservação de
medicinas e práticas alternativas.
3 Em s eu livro Nêmesis Médica – A expropriação da saúde, Illic h denuncio u a
institucionalização médica da saúde dos cidadãos, por meio do conjunto de
instituições que se ocupam do processo saúde e doença na sociedade contem-
porânea. Denominou este processo “medicalização social”. No momento atual
nos referimos não às instituições médicas, mas às biociências, e ao processo
em curso de biomedicalização da vida humana.

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