A nova Lei do mandado de segurança e as restrições à garantia de jurisdição em matéria tributária

AutorHugo de Brito Machado
CargoProfessor Titular de Direito Tributário da UFC. Presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários
Páginas41-49

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1. Introdução

A Lei n. 11.016, de 7 de agosto de 2009, disciplina o mandado de segurança antes disciplinado pela Lei n. 1.533, de 31 de dezembro de 1951. Segundo os que defendem a nova lei, teria havido apenas a consolidação em texto único do que já estava em leis anteriores ou no entendimento jurisprudencial pacificado. Não nos parece, porém, que seja assim, pois na verdade algumas inovações foram introduzidas, entre elas a proibição pura e simples da concessão de medida liminar, e da execução provisória da sentença que concede o mandado de segurança, quando a proteção pleiteada pelo impetrante seja para o direito de compensar crédito tributário ou obter a liberação de mercadoria importada.1

Não desconhecemos a existência do art. 170-A, do Código Tributário Nacional, albergando norma segundo a qual é vedada a compensação mediante o aproveitamento de tributo, objeto de contestação judicial pelo sujeito passivo, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial. Nem desconhecemos o que estabelecia a Lei n. 2.770, de 4 de maio de 1956 quanto a liminar e quanto a execução provisória de sentença que determinasse a liberação de mercadoria procedente do exterior.

Entretanto, não concordamos com o alcance atribuído ao citado artigo do Código Tributário Nacional em decorrência da confusão que tem sido feita entre duas situações distintas. Uma, a situação na qual se discuta o direito à compensação mediante a utilização, pelo contribuinte, de um crédito seu contra a Fazenda Pública, crédito sobre o qual não exista nenhuma pendência. E a outra, aquela situação na qual se discuta o direito à compensação mediante a utilização, pelo contribuinte, como crédito seu, do valor de um tributo cujo paga-

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mento o contribuinte considera indevido, mas esteja ainda pendente de decisão judicial definitiva a questão de saber se realmente ocorreu pagamento indevido. E quanto à Lei n. 2.770/1956 lembramos que se vinha entendendo ser a restrição na mesma contida aplicável apenas a mercadorias objeto de contrabando ou descaminho. Entendimento, aliás, inteiramente compatível com a norma de seu art. 2o, que se refere a entrega ou vinda do exterior de mercadorias, bens ou coisas de qualquer natureza, a indicar que o provimento judicial em questão seria referente à autorização para importar mercadoria proibida.

Neste pequeno estudo pretendemos demonstrar a distinção essencial entre aquelas duas situações nas quais se cogita de compensação, para deixar claro que a nova lei do mandado de segurança realmente inovou. E quanto à liberação de mercadorias importadas vamos demonstrar que a nova lei do mandado de segurança também inovou e suscitou questão praticamente superada. Em ambos os casos, ao inovar, incorreu em flagrante inconsti-tucionalidade porque violou a garantia de jurisdição, retirando-a tanto do contribuinte que pretenda proteção para o seu direito à compensação, como daquele que tenha contra si exigência arbitrária relacionada com a importação regular de qualquer mercadoria.

Começaremos pelo exame da garantia constitucional de jurisdição, para deixar claro que a mesma abrange o direito aos provimentos judiciais de urgência quanto estes sejam necessários, assim como o direito à execução das decisões judiciais, que não podem servir apenas como peças de adorno da ordem jurídica. Depois vamos demonstrar que realmente existe uma diferença essencial, da maior importância, entre o direito ao crédito contra a Fazenda Pública e o direito de extinguir um crédito tributário quando o contribuinte tenha contra a Fazenda Pública um crédito líquido e certo, seja porque já por esta reconhecido, seja porque objeto de decisão judicial defi-nitiva. E finalmente examinaremos o alcance dos dispositivos da nova lei do mandado de segurança que albergam restrições relativas ao direito à compensação, assim como ao direito à liberação de mercadorias, buscando demonstrar que eles realmente inovaram e, nessa parte, consubstanciam flagrante inconstitucionalidade.

2. Garantia constitucional de jurisdição

Ao cuidar Dos Direitos e Garantias Fundamentais, a vigente Constituição Federal assegura que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.2 Resta-nos então examinar o alcance dessa garantia constitucional para vermos se ela foi, ou não foi, contrariada pelos dispositivos da Lei n. 11.016, de 7 de agosto de 2009, que impõe restrições ao mandado de segurança como instrumento para a proteção do direito do contribuinte de compensar, assim como ao direito de obter a liberação de mercadorias importadas.

Sobre o alcance do dispositivo constitucional que garante o direito à jurisdição já escrevemos:3

"Ao dizer que a lei não pode excluir da apreciação judicial lesão ou ameaça a direito, a Constituição Federal está proibindo a edição de lei que exclua, quer dire-ta quer indiretamente, a apreciação judicial de pretensões à proteção contra lesões e contra ameaças a direitos. A adequada interpretação do preceito constitucional, que impede se faça dele letra morta, não pode ser outra. O dispositivo constitucional há de ser interpretado de modo a que não reste amesquinhado o seu conteúdo. A não ser assim não estará sendo assegurada a máxima efetividade à norma da Constituição.

"Segundo a moderna doutrina do Direito Constitucional as normas de uma

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Constituição devem ser interpretadas com observância de alguns princípios, entre os quais se destaca o da máxima efetividade. Como assevera Canotilho, 'a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê'."4

A garantia de jurisdição, portanto, há de ser entendida como garantia a uma prestação jurisdicional efetiva, isto é, uma prestação jurisdicional capaz de garantir os direitos, evitando o perecimento ou a deterioração destes pelo decurso do tempo, com os provimentos de urgência, quantos sejam necessários, como a efetividade dos direitos, com a execução do julgado. No dizer de Ricardo Perlingeiro, "não assegurar o direito à execução é o mesmo que negar o direito de ação, não sendo admissível, no atual estágio da sociedade, interpretar o princípio do Estado democrático de Direito de modo a concluir que não há execução contra a Fazenda Pública".5 E não assegurar os provimentos de urgência, quando sejam necessários para evitar o perecimento do direito, é também, indiscutivelmente, negar a jurisdição.

É importante, pois, entendermos o alcance da norma albergada no art. 170-A, do Código Tributário Nacional, para que possamos entender a inconstitucionalidade do dispositivo da nova lei do mandado de segurança, que veda pura e simplesmente o deferimento de medida liminar que tenha por objeto o direito à compensação de créditos tributários.

3. Direito ao crédito e direito de compensar
3. 1 Duas situações essencialmente distintas

Para que se possa entender o alcance da norma albergada pelo art. 170-A, do Código Tributário Nacional, é importante que se tenha em vista a distinção essencial que existe entre as duas situações, a saber: na primeira, o que se questiona é o direito do contribuinte de extinguir um crédito tributário, mediante compensação, utilizando um crédito seu contra a Fazenda Pública decorrente de um pagamento de tributo que considera indevido e sobre o qual está questionando em juízo. Na segunda, o que se questiona é apenas o direito do contribuinte de extinguir um crédito tributário, mediante compensação, utilizando um crédito seu contra a Fazenda Pública que se opõe à compensação sem negar a existência do crédito, já reconhecida administrativa ou judicialmente.

Porque consideramos essencial essa distinção, já escrevemos:

"Questão da maior importância reside em saber se o art. 170-A do Código Tributário Nacional, ao dizer que é vedada a compensação antes do trânsito em julgado da decisão que reconhece o direito do contribuinte, proíbe o deferimento de provimento cautelar, ou antecipatório, para garantir desde logo o direito de compensar.

"Resposta afirmativa a essa questão não se pode admitir sem menosprezo à garantia constitucional...

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