A Emergência da Nova Ordem Jurídico-Urbanística Brasileira

AutorRodrigo Faria
CargoGraduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Introdução

A princípio, a leitura do presente trabalho, que tem por escopo abordar o surgimento de uma nova ordem jurídico-urbanística brasileira e sua implicações, poderá causar certa estranheza àqueles estudiosos habituados à doutrina jurídica clássica. Essa possibilidade existe em função de abordarmos, também, temas pertinentes a outros ramos do conhecimento que não o Direito, pois por mais fundamental que seja o estudo formal e integrado das leis, princípios e instrumentos jurídicos de cunho urbanístico, a devida compreensão do Direito Urbanístico – sua natureza e suas possibilidades – também requer uma reflexão crítica sobre o processo de produção de tais leis, as condições e os obstáculos ao seu cumprimento, bem como sua relação com o processo de produção social da ilegalidade urbana.1

Dessa forma, iniciamos a exposição pela conceituação do que seria cidade e pela forma como ela foi se modificando através do processo de urbanização, além de questionarmos os efeitos gerados por isso. Na sequência abordamos o surgimento, devido ao descaso do Poder Público diante desses efeitos, dos movimentos sociais urbanos, bem como quais foram suas reivindicações, seu modo de agir, os obstáculos por eles enfrentados e as vitórias alcançadas no âmbito jurídico.

Ao final, tentamos discernir, diante do quadro exposto, em que medida os dispositivos trazidos pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade consagram uma nova ordem jurídico-urbanística no Brasil e quais são suas características.

O que é cidade?

Poderíamos formular diferentes conceitos de cidade, como um conceito econômico, um geográfico, um sociológico e até um jurídico, no qual esta seria um núcleo urbano qualificado por um conjunto de sistemas político-administrativo, econômico não-agrícola, familiar e simbólico como sede do governo municipal2. Necessitávamos para cumprir nosso intento, no entanto, de uma definição que levasse em consideração, principalmente, a presença do homem e de suas necessidades na cidade.

Dentro dessa perspectiva, uma excelente conceituação da cidade é aquela que a considera como um imã, posto que nasceria do agrupamento de pessoas atraídas pela possibilidade de troca de mercadorias e saberes oferecidas por ela.3

Por consistir numa aglomeração ou concentração de pessoas, a cidade necessitaria de uma certa organização, de uma regulação, já que , por menor que fosse, exigiria a gestão da vida coletiva. Teria sido exatamente dessa necessidade de organização da vida pública das cidades que emergiu o poder urbano, ou seja, uma autoridade político-administrativa responsável por sua gestão, a qual iria, durante toda a história, relacionar-se com os moradores dos centros urbanos das mais variadas formas possíveis, existindo desde uma maneira centralizada e despótica até uma gestão democrática da vida urbana.

Outra importante faceta desse papel agregador da cidade seria a existência desta enquanto mercado. O comércio de mercadorias foi condição de surgimento de muitos centros urbanos e teve, ao mesmo tempo, sua realização facilitada por esses mesmos centros. Isso ocorreu porque, ao concentrar e aglomerar pessoas, o espaço urbano intensificou as possibilidades de troca e colaboração entre os homens, potencializando sua capacidade produtiva, já que viabilizou a divisão do trabalho, criando assim uma interdependência entre os diversos moradores daquele espaço, a qual teria possibilitado as condições para a existência de uma vida coletiva. Além dessa divisão interna do trabalho, ou seja, dentro de uma cidade, passou a existir, posteriormente, uma divisão entre diferentes núcleos urbanos, cada qual produzindo determinado produto ou tendo uma função especial, e, lógico, uma divisão de trabalho também entre o campo e a cidade.

Diante dessa constatação do forte vínculo existente entre o urbano e o econômico, podemos ter uma noção mais aprofundada de como este aspecto influenciou e ainda influencia fortemente a formação e a organização das cidades, especialmente a partir do momento em que elas tornaram-se também um item de mercado de grande valor. Assim, o espaço urbano, atualmente, constitui mais um produto em nossa prateleira, ao qual uma pessoa terá acesso, principalmente, de acordo com seu poder econômico, sua classe, sua ocupação, sua raça e, até mesmo, seu credo, dependendo da sociedade em que se encontre. Fica patente, assim, que a exclusão social hoje também pode ser captada no modo de organização e de gestão do espaço urbano, já que nem todos contarão com o mesmo acesso a ele e ao seu controle.

No Brasil, a exclusão social é mais uma história contada pelas próprias cidades, tendo por testemunhas a segregação espacial e o enorme déficit habitacional existente, marcas indeléveis de uma sociedade excludente, geradora de um processo de urbanização igualmente excludente, bem como injusto e desigual, do qual falaremos a seguir, além de explicitarmos em que consistem essas mazelas e quem luta contra elas.

O processo de urbanização brasileiro

Quando se fala em processo de urbanização, tem-se em vista aquele processo através do qual a população urbana de uma determinada região cresce em proporção superior à população rural, o que não significa unicamente o crescimento das cidades, mas uma acelaração do ritmo do fenômeno de concentração urbana.

É claro, para nós, que esse processo constituiu um fenômeno mundial, tendo seu maior impulso a partir da Revolução Industrial, já que a indústria necessitava de toda uma série de condições para o seu estabelecimento, como excedente de mão-de-obra e acesso a serviços públicos, encontrando nas cidades ou em suas proximidades os locais mais propícios para instalarem-se. Ao serem instaladas, passaram a atrair muitas pessoas do campo que, por estarem desempregadas ou em situação precária, viam na cidade a oportunidade de conseguir melhores condições de vida.

As cidades, contudo, não possuíam um planejamento eficaz que possibilitasse a recepção de toda essa população que para ela se encaminhava diariamante. Gerou-se, assim, um ambiente urbano deteriorado com problemas de déficit habitacional e de desemprego, já que, de um dado momento em diante, a economia das cidades não mais gerava empregos na mesma proporção em que a população urbana crescia.

Na história brasileira, esse processo ocorreu de maneira semelhante no tocante aos motivos geradores e a seus efeitos, tendo iniciado, no entanto, em período mais tardio do que em outros países. No Brasil, a concentração em núcleos urbanos ganhou força, principalmente, com a crise mundial de 1929, quando a economia baseada na produção cafeeira voltada para exportação entrou em crise, gerando um enorme contingente de desempregados no campo, que seguiram rumo às cidades em busca de seu sustento.

Dessa maneira, impulsionado tanto pela “Revolução” de 30 quanto pela crise econômica mundial que afetou as atividades agromercantis, praticamente nasce o fluxo migratório constante e progressivo rumo aos núcleos urbanos. Juntamente com a emergência da burguesia comercial e industrial, com o crescimento do mercado urbano de bens e serviços e com o aumento da participação do Estado nas esferas econômica e social a partir da centralização das funções políticas e decisórias, esse fluxo faz surgir um novo modelo de cidade, que vai se adensando e produzindo e comercializando bens antes importados.

Outro marco histórico de forte influência no processo de urbanização brasileiro consistiu na Segunda Guerra Mundial e no seu período pós-guerra, os quais geraram a aceleração da atividade industrial e a posterior hegemonia do setor fabril em nossa sociedade. Nessa época, o Brasil se aproxima da realidade daqueles outros países que já haviam sofrido seu processo de industrialização e consequente processo de urbanização desenfreado relatado acima.

Apesar de somente uma pequena parcela de nossa população ter tido sua renda vinculada diretamente às atividades industriais, podemos afirmar que a influência da industrialização sobre a urbanização foi considerável. O padrão assumido pelo país para se industrializar, caracterizado pela concentração de investimento na região Centro-Sul e pela produção de bens de consumo de luxo, foi determinante para a concentração de renda e do acesso a bens e serviços urbanos e para o estímulo à mobilidade geográfica.

Na esteira desse processo de “desenvolvimento” do país, caracterizado pela importação de um modelo cultural e econômico, temos a política estabelecida pelo governo no período da ditadura, que investiu, principalmente, na infra-estrutura nacional, gerando uma facilidade de circulação de bens e pessoas que contribuiu enormemente para a aceleração da migração rural-urbana e do elevamento das taxas de crescimento demográfico.

Os municípios brasileiros não se encontravam preparados para esse processo, pois não possuíam meios políticos, jurídicos, administrativos e financeiros suficientes e adequados para enfrentá-lo. O próprio Brasil não estava preparado para ter o perfil de sua população transformado, em apenas trinta anos, de rural para urbano. Acrescentando a isso a forte pressão exercida pelos setores empresariais, que fez com que grande parte dos recursos estatais fossem destinados para investimentos de interesse privado, foi agravado o quadro de exclusão social que já assolava o país há séculos.

Consiste prova dessa história da exclusão social brasileira um fenômeno denominado segregação espacial, que existe enquanto movimento de separação, dentro do espaço urbano, de...

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