Novas formas de acesso à justiça no Direito Comunitário da concorrência

AutorAugusto Jaeger Junior
CargoDoutor em Direito do Mercosul e da União Européia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestre em Direito Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor da graduação e da pós-graduação na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões
Páginas12-25

Page 12

1. A importância do TJCE e das cortes dos Estados-membros

A criação da Comunidade Européia fez nascer um direito novo, autônomo, chamado de comunitário, que goza de primazia e por tal é supremo na sua relação com o direito nacional. Esse ordenamento necessita ser uniformemente compreendido por todos os Estados-membros. Para tanto, uma jurisdição especializada foi encarregada de ser a última instância para determinar a correta interpretação e aplicação do Tratado, tendo se tornado base da edificação do direito comunitário. Essa jurisdição é o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE).

Ele desempenha o controle, na condição de guardião da interpretação e aplicação, tanto dos Tratados constitutivos quanto do direito derivado. Assim, o artigo 220 TCE, da regulamentação que se prolonga até o artigo 245, estipula a condição do Tribunal como garantidor do respeito do direito na interpretação e aplicação do ordenamento. Com suas decisões, “vai estruturando o corpus do direito comunitário europeu”2, aplicável, entre outros, aos Estados-membros e aos particulares. Faz ser respeitado o conjunto normativo compreendido no direito comunitário, até mesmo no que tange à aplicação interpretativa uniforme por parte das jurisdições nacionais.

Seu papel é tão importante3 que não se limitou a interpretar e aplicar as disposições do direito comunitário, vindo a definir e impor um conjunto de princípios fundamentais, que, na visão de CAMPOS, “permitiram edificar uma verdadeira ordem jurídica comum aos Estados da Comunidade”4, criando mesmo um certo federalismo jurídico europeu. Ainda para o autor, algumas das decisões deste órgão com sedePage 13em Luxemburgo têm força executória nos territórios dos Estados-membros. Como jurisdição constitucional, garante o integral respeito das regras dos Tratados de Paris e Roma, bem como na condição de responsável pela interpretação e aplicação uniformes do direito comunitário assegura a unidade do corpus juris comunitário5.

A sua jurisprudência é fonte do direito comunitário6 e é ela quem garante a uniformidade desse direito e da vigência e aplicação. O órgão, em si, tem competência tão ampla que chega ao ponto de abranger todos os domínios onde a intervenção dos tribunais de qualquer Estado-membro possa afetar, de qualquer modo, o funcionamento da Comunidade.

Em verdade, desde a fase inicial da integração é sentida a importância do Tribunal, especialmente pela imposição às jurisdições nacionais dos princípios da primazia, da aplicabilidade direta e pela uniformidade de interpretação e apreciação da validade das normas. Com isso, ele exerceu uma notável influência no processo, tendo inclusive contribuído para o equilíbrio no plano institucional quanto às relações entre o Conselho, a Comissão e o Parlamento Europeu7. Nesse sentido, a jurisprudência do Tribunal contribuiu fundamentalmente para a concretização jurídica dos institutos do direito comunitário8.

Uma específica importância de um tribunal supranacional pode ser sentida na rica e abundante jurisprudência em matéria de direito da concorrência9. Pelo10. Ademais, elaborou uma rigorosa e corajosa11 jurisprudência que limitou a capacidade dos Estados-membros de adotarem medidas protecionistas contra as liberdades fundamentais. E tudo isso sem ter a Comunidade adotado o sistema da common law12.

Quem também desempenhou um relevante papel foram as cortes nacionais13. Além das autoridades locais de concorrência, as cortes nacionais empregam diretamente as normas de defesa da concorrência, para citar o tema aqui mormente trabalhado. A execução das regras está limitada àquelas regras com aplicabilidade direta, como os artigos 81 e 82, assim como os artigos 86, n. 1, e 88, n. 3 TCE.

Essas cortes tiveram uma importante função na aplicação das regras da concorrência, seja pela descentralização da aplicação ou pela aplicação das leis nacionais de concorrência, que na maioria dos Estados se parece próxima à da Comunidade14. Em decorrência disso, é possível visualizar desde já a importância da descentralização da aplicação das regras da concorrência como instrumento de uma maior participação das instâncias nacionais, o que gera maiores possibilidades de acesso à justiça aos cidadãos comunitários. Às instâncias nacionais, com as reformas no direito da concorrência, foi dada uma posição ainda mais importante na aplicação descentralizada desse importante ramo do direito comunitário.

Page 15

2. As reformas no direito comunitário da concorrência

O presente tópico dedica-se à apresentação das reformas ocorridas no direito comunitário da concorrência. Elas trouxeram uma maior aplicabilidade direta às regras e um maior comprometimento das instâncias nacionais, já que fundadas em princípios de descentralização de aplicação.

O Tratado assenta as regras materiais para o funcionamento da livre concorrência aplicáveis às empresas, as quais proíbem acordos ou práticas que possam afetar o comércio entre os Estados-membros, bem como os abusos de posição dominante, regras estas aplicáveis tanto às empresas privadas como às públicas, para que envolvam os monopólios do Estado. A aplicação dessas regras é determinada por normas processuais. Essas, regulamentadas pelo direito secundário, foram ao longo do tempo profundamente alteradas. Presentemente, se está perante o conhecimento e o amadurecimento da maior de todas as reformas nesse âmbito, advinda com o Regulamento n. 1/2003, que substituiu o Regulamento n. 17/62. O estudo deve-se por justamente terem trazido para o ordenamento uma mais forte descentralização da aplicação das regras.

No contexto de normas destinadas às empresas, é de se relacionar as de controle das concentrações de empresas. Também regulamentadas pelo direito secundário, elas tinham tido suas últimas alterações com o Regulamento n. 1310/ 97, que modificou parcialmente o Regulamento n. 4064/89. Desde 2004, ambos se encontram substituídos pelo de n. 139/2004.

Além das normas da concorrência se direcionarem às empresas, elas são dirigidas aos Estados-membros. Uma terceira reforma ocorreu nas regras materiais e processuais aplicáveis a eles. Em princípio, as disposições comunitárias proíbem todas as atuações que possam afetar negativamente a concorrência. As ajudas, dentre estas, constituindo-se transferências específicas do setor público para as empresas, sem que estas ofereçam contra-partida, alteram, sobremaneira o comportamento do mercado e implicam custos extremados ao orçamento público, prejudicando a coletividade. Por tudo isso, são tidas como as mais nefastas.

As reformas estão fundadas sobremaneira em descentralização e tentativas de promover uma maior participação de instâncias nacionais, como autoridades de concorrência e tribunais. Para tanto, foi promovida a troca do sistema. No caso da Comunidade, o novo regime de isenção legal significa que a norma da derrogação da proibição de uma prática anticoncorrencial pode ser aplicada não somente pela Comissão, mas também pelos tribunais e autoridades nacionais, aumentando as formas de acesso à justiça, como aqui se quer indicar. Vale referir que a opção por uma descentralização é efetivada com a determinação de aplicabilidade direta a mais regras.

Page 16

2.1. A reforma nas regras processuais aplicáveis às empresas

Entre as reformas no direito comunitário da concorrência, a maior foi a vinda com o Regulamento n. 1/2003, relativa às regras processuais aplicáveis às empresas. Elas trouxeram aplicabilidade direta a mais dispositivos e um maior comprometimento das instâncias nacionais, já que fundadas em princípios de descentralização.

A reforma nas regras processuais aplicáveis às empresas promoveu uma completa troca de sistemas, no caso o de reserva de autorização pelo de isenção legal. O Regulamento n. 17/62 havia sido o primeiro regulamento de execução. Ele estabeleceu um sistema de notificação centralizado e a exclusiva competência da Comissão para a declaração de inaplicabilidade do artigo 81, n. 1 TCE, em função do n. 3 do mesmo artigo. Para tanto, a Comissão dispunha de decisões para casos singulares, quando o comportamento era incompatível, mas tinha aspectos positivos e preenchia as condições legais do n. 3 do artigo 81 TCE, de regulamentos de isenção por categorias, de certificados negativos, quando o acordo não apresentasse infração e fosse compatível com o Tratado, e de comfort letters, que, embora não apresentassem segurança jurídica, eram usadas em 90 por cento dos casos, de forma indiscriminada.

Com o tempo, esse sistema começou a apresentar limitações. As comfort letters eram caracterizadas por uma precariedade jurídica, o sistema limitava a Comissão no seu desejo de se concentrar nos processos importantes e o monopólio detido afastava as instâncias nacionais de uma melhor e mais participativa colaboração na aplicação do direito. Posteriormente, a Comissão criou alternativas para contornar os problemas. As isenções por categorias já eram entendidas como alternativas para a diminuição do encargo de trabalho da Comissão, devido à avalanche de notificações que o sistema ensejava. O debate sobre reforma necessitou ser estimulado.

Numerosos motivos foram apontados como ensejadores da reforma. Como exemplos, o aumento de comunicações de acordos que a chegada do mercado interno promoveu, a indisponibilidade de recursos materiais e pessoais necessários para a garantia do sistema, a impossibilidade de concentrar-se nos casos mais difíceis, o fato de o Regulamento n. 17/62 ser antigo e nunca ter sido reformado, a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT