Obrigatoriedade de realização de inquérito civil

AutorProf. Adilson Abreu Dallari
CargoProfessor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Páginas1-13

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I - Colocação do problema

O Ministério Público, assim como, por exemplo, o Tribunal de Contas, é uma instituição de nível constitucional. Suas relevantíssimas finalidades estão expressas no art. 127 da Constituição Federal, de cujo texto nada consta a indicar que ele possa ser havido ou como um Poder acima de todos os poderes ou como um substituto perfeito do cidadão:

"Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

Ou seja, o Ministério Público é uma instituição legal, no sentido de que está inserido na ordem jurídica nacional, sendo dotada de poderes e responsabilidades. Como toda e qualquer entidade ou instituição pública, tem um caráter eminentemente instrumental, destinando-se, no campo de suas atribuições, a atuar no sentido da realização do interesse público.

Os interesses próprios e específicos da instituição Ministério Público e de seus integrantes são interesses secundários em relação ao interesse público, entendido como o interesse comum de toda a coletividade.

Por exemplo: não pode o Ministério Público valer-se de provas obtidas por meios ilícitos nem para defender a ordem jurídica, pois isso seria até mesmo uma contradição. Enfim, o Ministério Público é dotado de poderes jurídicos necessariamente limitados, como é elementar à ordem jurídica, pois direito é sempre limitação; todo direito é limitado. Page 2

Voltando ao texto constitucional, cabe destacar o disposto no parágrafo primeiro desse mesmo artigo acima transcrito, onde estão enumerados os princípios fundamentais do Ministério Público:

"§1º. São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade a independência funcional".

Esta independência funcional deve ser entendida como liberdade de atuação dentro dos quadrantes da ordem jurídica, dentro dos limites estabelecidos pela Constituição e pelas leis em geral. Independência não significa liberdade absoluta.

Para que o Ministério Público, único, indivisível e independente, possa atingir suas finalidades de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, com independência, o próprio texto constitucional já lhe define as funções:

"Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público:

...

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;".

Cabe, portanto, ao Ministério Público promover a ação civil pública e instaurar o inquérito civil, figura esta que representa uma novidade, algo que não tem tradição no ambiente jurídico nacional, mas que, pelo que indica a denominação, deve ter uma natureza e uma finalidade análogas às do inquérito policial, já tradicional no direito brasileiro.

O problema está em que, enquanto a ação civil pública é suficientemente disciplinada na legislação específica, complementada pela legislação processual civil, o inquérito civil não tem disciplina legal.

O art. 8º da Lei nº 7.347, de 24/07/85 (Lei da Ação Civil Pública), apenas afirma, em seu § 1º, que "O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil...", sem indicar qualquer parâmetro a respeito de quando essa providência é necessária ou de quando ela é dispensável.

Alguns, menos avisados, menos afeitos à interpretação sistemática das normas jurídicas, atendo-se exclusivamente à literalidade do texto isolado, vislumbram nessa falta de parâmetros expressos uma total liberdade, uma discricionariedade absoluta, para instaurar ou não o inquérito civil, ao puro arbítrio da autoridade ministerial competente, no exercício de sua independência funcional.

Não é isso, entretanto, o que emana de uma análise do assunto, quando feita no contexto da ordem jurídica, segundo os mais prestigiados métodos interpretativos. Page 3

II - Interpretação das normas jurídicas

Interpretar um texto normativo é algo mais do que ler a seqüência de palavras que o integram. Por certo, qualquer pessoa alfabetizada é capaz de ler um texto normativo, mas somente alguém dotado de conhecimentos técnicos científicos em Direito é capaz de apreender todo o seu conteúdo, retirando daí ilações de ordem prática.

Antes de se aplicar qualquer disposição normativa a um caso concreto é preciso interpretá-la, até para se saber se ela se aplica efetivamente ao específico caso em pauta.

O que é interpretar um dispositivo legal? Quem responde com excepcional clareza a essa pergunta é EROS ROBERTO GRAU, na parte inicial de seu "Licitação e Contrato Administrativo" (Malheiros Editores, 1995, pág. 5 e 6 ):

"A interpretação do direito é atividade voltada ao discernimento de enunciados semânticos veiculados por preceitos (disposições, textos)o intérprete desvencilha a norma do seu invólucro (o texto); neste sentido, o intérprete "produz a norma". Atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas, a interpretação é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual o juiz desvenda as normas contidas nas disposições. Por isso, as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, não dizem nada -- elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem. A interpretação é um processo intelectivo através do qual, partindo-se de fórmulas lingüísticas contidas nos atos normativos (os textos, enunciados, preceitos, disposições), alcançamos a determinação do seu conteúdo normativo".

Mas nenhuma disposição normativa tem vida fora do contexto em que está necessariamente inserida. O universo normativo não é um amontoado caótico de prescrições, mas, sim, um sistema, organizado, articulado e hierarquizado, no qual as contradições são apenas aparentes.

Nunca se pode apreender a totalidade do conteúdo normativo de um dispositivo legal isolado, sem relacioná-lo com outros dispositivos e, muito especialmente com princípios contidos no ordenamento jurídico do qual ele é apenas uma parte. A correta elaboração desse relacionamento exige conhecimentos científicos específicos. A ciência que cuida da interpretação das normas jurídicas é a hermenêutica.

Entre os cultores dessa ciência destaca-se a figura exponencial de CARLOS MAXIMILIANO, de cuja obra "Hermenêutica e Aplicação do Direito" (Ed. Forense, Rio, 1984, págs. 128 e 129), foi extraída a seguinte passagem:

"O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos Page 4 gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos.

Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço.

Confronta-se a prescrição positiva com outra de que proveio, ou que da mesma dimanaram; verifica-se que o nexo entre a regra e a exceção, entre o geral e o particular, e deste modo se obtém esclarecimentos preciosos. O preceito,...

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