Um olhar foucaultiano sobre a produção da loucura e da família

AutorCristine Gorski Severo
Páginas374-388

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Introdução

A proposta deste artigo é analisar, a partir de uma perspectiva foucaultiana, a produção de uma certa loucura, mediante o procedimento da confissão. Para tanto, considera-se o discurso psicanalítico sobre a loucura e a maneira pela qual esse discurso, ao tratar da loucura, produz uma certa família: loucura e família são produzidas uma em relação à outra. Ao longo do texto, também se procura evidenciar as contribuições de Michel Foucault para uma análise discursiva.

Vale ressaltar que a loucura é tomada como objeto de saber e que se vincula a uma certa noção de família. Tal objeto é produzido por meio do procedimento da confissão, que, para Foucault, caracteriza o saber psicanalítico. Trata-se, portanto, de analisar a produção da loucura e da família mediante a confissão, procedimento de escuta próprio do campo psicanalítico. Sobre tal procedimento, observa-se que, desde o século XVI, as práticas confessionais “distanciaram-se de um contexto puramente religioso e difundiram-se penetrando em outros domínios: primeiro, na pedagogia; depois, nas prisões e outras instituições de internamento e, mais tarde, no século XIX, na medicina” (RABINOW e DREYFUS, 1995, p.193), como procedimentos produtores de saber.

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Não é objetivo deste trabalho encontrar uma verdade sobre a loucura e a família, com a ferramenta arqueológica 2 oferecida por Foucault, nem tampouco desvelar a origem da loucura. Trata-se, sim, de olhar para o discurso psicanalítico à luz do que Foucault chama de condições de surgimento de determinado saber, com a inclusão de uma perspectiva genealógica 3 , e de refletir sobre as condições que possibilitaram o discurso sobre a loucura no saber psicanalítico, a partir do final do século XIX. Também não se busca uma origem para o saber psicanalítico, nem um sujeito fundador de certo conhecimento. Buscase mostrar a maneira pela qual é possível falar sobre a produção da loucura como objeto de saber psicanalítico, em determinada época, mediante o procedimento da confissão. Não é por acaso que um certo saber sobre a loucura e a família foi possível: Freud fundou a psicanálise, porque as condições daquele momento possibilitaram que um saber acerca do inconsciente e do desejo fosse produzido; e a Lacan foi possível falar sobre psicose, porque Freud criou condições para tal saber. A análise feita neste artigo leva em conta abordagens de Freud e de Lacan sobre a loucura, uma vez que ambas se organizam a partir do procedimento de escuta.

A análise do discurso foucaultiana proposta neste artigo rompe com a idéia de verdades escondidas por alguma ideologia, que teriam o papel de encobrir o real. Para Foucault, até mesmo o real é uma produção, que se dá por meio de um certo procedimento que cria condições para construir uma certa verdade sobre aquilo que é o objeto do saber/controle, no caso deste trabalho, a loucura-família no discurso psicanalítico.

Nessa perspectiva, não se trata de “buscar” nem uma verdade sobre o sujeito ou sobre o objeto que se recorta, nem o “melhor” procedimento que permitiria uma descoberta mais verdadeira do objeto,Page 376visto que aquele é constitutivo deste. Antes, objetiva-se encontrar as condições que tornaram possível configurar um certo saber sobre determinado objeto, mediante determinados procedimentos que recortam e localizam o objeto, de acordo com as especificidades desses mesmos procedimentos. Vale lembrar que o saber é sempre configurado/produzido por meio das relações de poder, ou seja, a genealogia dos saberes exige um olhar político, que evidencie as relações de poder que fazem com que certas coisas tidas como verdadeiras sejam ditas sobre algo tomado/produzido como objeto do saber.

Sobre a produção dos objetos, vale ressaltar, brevemente, algumas considerações (FOUCAULT, 2000):

- Os objetos não existem por si, nem tampouco são descobertos em algum momento. Eles são constituídos devido a determinadas condições e relações que os possibilitam ser postos/constituídos em discurso, em determinada época.

- Essas relações não são inerentes aos objetos e dão-se entre “instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização” (p.51).

- As relações que possibilitam o surgimento dos objetos são discursivas. Essas relações não operam fazendo relações entre palavras, frases, mas sim impondo determinadas formas ao discurso. Elas são tudo aquilo que faz com que determinado discurso (e não outro) seja possível, em determinado momento: “essas relações caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias em que ele se desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática” (Ibid., p.53). Aborda-se, aqui, o conjunto de regras que possibilitam a existência de certa prática discursiva, sendo que tais regras são interiores ao discurso, ao pretenderem o discurso e não outra coisa, e são exteriores, ao servirem de condição de possibilidade para o discurso.

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Seguem-se algumas considerações acerca da noção de poder, cujo funcionamento Foucault brilhantemente descreve, no que diz respeito à produção de saberes e de subjetividades, e toma-se o que o autor chama de prática da confissão como procedimento que permite configurar/produzir os discursos sobre a família e a loucura, no campo psicanalítico.

O poder e a confissão

Para refletir sobre a confissão como procedimento (de escuta) para produção do saber psicanalítico, é necessária uma breve explanação daquilo que faz esse procedimento funcionar efetivamente: o poder.

Sobre o poder

Foucault considera dois tipos de poder presentes na sociedade: um que opera negativamente – poder lei – , e outro que opera positivamente – poder prazer. O primeiro opera de cinco maneiras: a) pela censura e pelo mascaramento; b) pela norma que produz os limites, por exemplo, do normal e anormal; c) pela proibição e pelo castigo; d) pela censura do discurso e pelo silenciamento; e e) segundo o modelo jurídico, permeando todas as instituições da sociedade.

Foucault, no entanto, não centra o funcionamento do poder apenas nas características acima. Ao contrário, o autor salienta outro tipo de funcionamento que produz coisas, como os saberes e as subjetividades. Essa segunda forma do poder caracteriza-se por: a) relações de poder apoiadas em saberes que as justifiquem; b) processo dinâmico de circulação do poder, que não se cristaliza em nenhuma posição; c) relação mútua entre as esferas micro e macro, sendo que uma não causa a outra, mas ambas se articulam mutuamente; e d) apoio mútuo dos discursos, não havendo, por exemplo, discurso cuja resistência não seja constitutiva dele mesmo.

Em outras palavras, o poder não opera apenas reprimindo, censurando, negando, mas sim, e sobretudo, produzindo subjetividades, discursos, verdades. O poder não se impõe de cima para baixo, mas opera microfisicamente e espalha-se por todas as relações que permeiam a sociedade. O poder produz a sociedade.

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A confissão como procedimento para produção do saber psicanalítico

Conforme se enfatizou, os saberes são produzidos por procedimentos de poder que, no caso da psicanálise, caracterizam-se pela prática da confissão. Foucault, em História da Sexualidade (1999), surpreende com sua “hipótese repressiva”, de que, muito longe de reprimir, censurar, silenciar o sexo, o que o Ocidente fez, nesses três últimos séculos, foi justamente o oposto: conceder ao sexo uma autonomia discursiva, por meio de uma

[...] multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar cada vez mais; obstinação das instâncias do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele próprio sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado (Idem, p.22).

Apesar disso, é ingenuidade acreditar em certa liberdade sexual ou liberdade de expressão. Certamente, todo esse falatório sexual, antes de libertar, engana, ao produzir um saber sobre o sexo que fala da maneira (correta) pela qual o sujeito (normal) deve ser constituído pelo seu desejo. A regra é: diga-me seus desejos, do seu sexo, que lhe direi quem...

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