Onde estão as lutas pela reforma agrária?

AutorFlávio Lazzarin - Ruben Siqueira
CargoPadre, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Maranhão. - Assessor da CPT na Bahia, membro da Coordenação Executiva Nacional da CPT
Páginas67-87
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Cadernos do CEAS, Salvador, n. 237, p. 254-274, 2016
ONDE ESTÃO AS LUTAS PELA REFORMA AGRÁRIA?
Where are the struggles for land reform?
Flávio Lazzarin*
Ruben Siqueira**
Resumo
Celebrando 40 anos da presença fraterna e sororal da CPT junto às comunidades do campesinato oprimido e
resistente, neste artigo buscamos evidenciar os atuais suje itos emergentes da luta por terr a, após a evidente
falência das políticas públicas, erroneamente chamadas de reforma agrária. Sem mitificar as atuais lu tas
camponesas no Brasil, protagonizadas sobretudo por povos originários e comunidades tradicionais, pomos o
acento sobre os paradigmas da resistência e da autonomia territorial, à revelia do c apital e do Estado. Entre as
várias "vias campesinas", destacamos o movimento dos quilombolas e o dos povos do Xi ngu. Em suma,
apoiamos a perspectiva de uma reforma agrária construída a partir da iniciativa camponesa. Ao mesmo t empo,
apontamos para a fundamental importância das religiosidades e espiritualidades nos processos atuais de
organização, articulação e mobilização dos movimentos sociais no campo.
Palavras-chave: territórios, autonomia, descolonização, violência, insurgência, Estado, Reforma Agrária,
espiritualidades, macroecumenismo.
(...) o campesinato que poucas vezes chega ao
poder, ou mais frequentemente ele aparece como
um elemento na composição do poder, quando tem
algum sucesso, mas mais frequentemente o
campesinato que está presente nas lutas sociais é
deslocado dos sistemas de poder.
(Octávio Ianni, A utopia camponesa1)
Tendo todo cuidado para não mitificar as atuais lutas camponesas no Brasil, tentamos
neste artigo refletir criticamente sobre a permanência e diversificação da visão da reforma
agrária gestada, nestas últimas quatro décadas, pelas várias “vias campesinas”. Dados de
conflitos no campo, documentados pela CPT nos últimos 31 anos, nos balizam. E, ao mesmo
tempo, apontamos para a fundamental importância das religiosidades e espiritualidades nos
processos atuais de organização, articulação e mobilização dos movimentos sociais no campo.
Estamos numa estação dramática da história do Brasil e do mundo, mas “brasileiros:
profissão esperança”, não nos deixamos influenciar por queixumes e lamentações, nem pela
repetição psicótica de dialéticas datadas e inúteis que não irão "salvar" a gente da trágica e
sombria conjuntura que estamos vivendo. Em alternativa às falsas polarizações, que ainda
*Padre, agente da Comiso Pastoral da Terra (CPT) no Maranhão.
** Assessor da CPT na Bahia, membro da Coordenação Executiva Nacional da CPT
1 IX Encontro Anual da ANPOCS GT “Est ado e Agricultura”. Águas de São Pedro, 22 a 25 de outubro de 1985.
Disponível em:
http:// www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=6122&Itemid=372.
Acesso em 31 de jul. 2016.
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perturbam significativos setores da sociedade civil, ousamos afirmar que, desde o começo da
trajetória governista do PT, não existe polarização nenhuma face à lógica da conciliação de
classes, que resultou no condomínio do "centrão"2 e à custa de promiscuidade com o
agronegócio e o capital variamente oligopolizado.
Hoje é mesmo necessário polarizar contra a polarização espetacular e oportunista. O
novo polo não é ilusão, porque, de fato, existem, há décadas, movimentos que agem e que
pensam a p artir da crise civilizacional do Antropoceno, nova era geológica em que é o ser
humano o principal responsável pelos problemas ambientais que sofre o planeta
crescentemente. Ser contra as causas e os causadores desta crise significa ser a favor de novas
matrizes energéticas, que dispensam petróleo e hidrocarbonetos, hidrelétricas e falsas
“energias limpas”. E ser aliado de lutas contra o agronegócio e a mineração sem freios que
destroem, junto com biomas e ecossistemas, a vida de seres humanos. Aqui estão os pobres e
os povos que teimosamente acompanhamos, há mais de quarenta anos. E que sempre
perderam as eleições! Reduzir a análise das conjunturas à crise da mediação política é aceitar
de se conformar à navegação de pequena cabotagem, quando, por lutas e reflexões,
tínhamos alcançado o mar aberto.
É verdade: os números e os fatos que apresentam a crônica violência no campo,
publicados anualmente pela CPT, espantam e indignam. Mas também encorajam os dados da
resistência e da luta camponesa. Entre 1985 e 2015, em 31 anos de documentação, a CPT
registrou 24.077 conflitos de terra, envolvendo 13,32 milhões de pessoas e quase 360 milhões
de hectares. O Quadro I e o Gráfico I abaixo revelam a evolução quantitativa dos conflitos por
terra nestes 31 anos, em que se repara a tendência de crescimento nos últimos anos, depois de
grande elevação do número no início dos governos do PT (2003), com declínio posterior e
crescimento nos anos recentes, do segundo mandato presencial de Lula aos de Dilma
(2008/2015). Não é o caso, porém, das ocupações de terra e dos acampamentos, principais
instrumentos de pressão dos movimentos dos sem-terra pela reforma agrária, que decaem.
Que categoria, então, de camponeses está na elevação do número de conflitos pela terra neste
período?
Bloqueadas as lutas diretas pela reforma agrária nos arranjos dos governos de
coalização, como requisito do projeto petista de desenvolvimentismo via conciliação de
2 Na Câmara Federal, o grupo de deputados de pouca expressão, do chamado “baixo cl er o”, que sob a
liderança do deputado Eduardo Cunha, do PMDB-RJ, dominou as decisões na última legislatura.

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