A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços

AutorProf. Luís Roberto Barroso
CargoProf. Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Universidade de Yale. Procurador do Estado e advogado no Rio de Janeiro.
Páginas1-28

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I Nota prévia

O estudo que se segue encontra-se dividido em duas partes. Na parte I, procura-se delinear doutrinariamente o papel econômico do Estado e seus limites legítimos. Na parte II, desenvolve-se o estudo das possibilidades e limites da ação estatal no que diz respeito a preços privados em geral. Doze anos após a reconstitucionalização, estes temas ainda suscitam perplexidades diversas e não foram pacificados na doutrina, na jurisprudência e na prática dos Poderes públicos. Page 2

Doutrinadores eminentes sustentam o ponto de vista de que, no Brasil, após a Constituição de 1988, não mais seria legítimo qualquer tipo de atuação estatal no controle de preços, à vista do princípio da livre concorrência1. Há um conjunto bem articulado de argumentos em favor dessa tese, sem embargo de existir pronunciamento jurisprudencial relevante em sentido diverso2. Cabe-me declinar, por dever de honestidade científica, que não é esta a minha convicção, consoante externei em artigo doutrinário escrito ainda em 19933.

De fato, não tendo o princípio caráter absoluto, pode haver situações excepcionais de intervenção estatal legítima em matéria de preços. Esta possibilidade, eventual e drástica, não se confunde com a idéia que tem ganho curso em certos segmentos governamentais: a de que a livre iniciativa, decisão política fundamental do constituinte de 1988, deva ceder passo diante de todos os demais bens em alguma medida valorados pela Constituição. Ou pior: deve submeter-se às decisões circunstanciais da conveniência política.

A questão é complexa e será objeto de apreciação analítica, em um esforço para delimitar o espaço próprio de irradiação de cada um dos princípios relevantes, bem como dos parâmetros dentro dos quais os juízos de ponderação deverão operar. A trajetória delineada inclui a análise de aspectos jurídico-constitucionais da ordem econômica e do papel reservado à iniciativa privada e ao Estado, com ênfase nos fundamentos e limites da intervenção disciplinadora do Poder Público sobre a atuação privada. Page 3

Parte I - Constituição, ordem econômica e intervenção estatal
II - Fundamentos da ordem econômica: livre iniciativa e valorização do trabalho humano

A livre iniciativa e o valor do trabalho humano são dois dos princípios fundamentais do Estado brasileiro e os fundamentos da ordem econômica. Essa é a dicção expressa dos arts. 1º, IV, e 170, caput, da Carta, in verbis:

"Art.1º. A República Federativa do Brasil (...) tem como fundamentos:

........................................................

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;"

"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (...)".

Tais princípios correspondem a decisões políticas fundamentais do constituinte originário4 e, por essa razão, subordinam toda a ação no âmbito do Estado, bem como a interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais. A ordem econômica, em particular, e cada um de seus agentes - os da iniciativa privada e o próprio Estado - estão vinculados a esses dois bens: a valorização do trabalho [e, a fortiori, de quem trabalha,] e a livre iniciativa de todos - que, afinal, também abriga a idéia de trabalho -, espécie do gênero liberdade humana.

A Constituição de 1988 cuidou de concretizar o princípio da valorização do trabalho em regras concentradas em seu art. 7º, onde se pode encontrar um rol de direitos assegurados aos trabalhadores5. O elenco que ali figura não exclui outros direitos que visem à melhoria de sua condição social, nos termos expressos do caput do mesmo artigo6. O constituinte prestigiou, nessa mesma linha, o trabalho dos autores e inventores, através das garantias do direito autoral (art. 5º, XXVII) e da proteção patentária (art. 5º, XXIX), e daqueles profissionais que participam de espetáculos públicos ou de obras coletivas (art. 5º, XXVIII). O fundamento da proteção ao trabalhador e da valorização do trabalho encontra-se na própria dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).

O princípio da livre iniciativa, por sua vez, pode ser decomposto em alguns elementos que lhe dão conteúdo, todos eles desdobrados no texto constitucional. Page 4 Pressupõe ele, em primeiro lugar, a existência de propriedade privada, isto é, de apropriação particular dos bens e dos meios de produção (CF, arts. 5º, XXII e 170, II). De parte isto, integra, igualmente, o núcleo da idéia de livre iniciativa a liberdade de empresa, conceito materializado no parágrafo único do art. 170, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização, salvo nos casos previstos em lei. Em terceiro lugar situa-se a livre concorrência, lastro para a faculdade de o empreendedor estabelecer os seus preços, que hão de ser determinados pelo mercado, em ambiente competitivo (CF, art. 170, IV). Por fim, é da essência do regime de livre iniciativa a liberdade de contratar, decorrência lógica do princípio da legalidade, fundamento das demais liberdades, pelo qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF, art. 5º, II).

É bem de ver que, embora a referência à livre iniciativa seja tradicional nos textos constitucionais brasileiros, a Carta de 1988 traz uma visão bem diversa da ordem econômica e do papel do Estado, em contraste com os modelos anteriores. Já não se concede mais, como fazia a Carta de 1967/69, ampla competência na matéria ao legislador ordinário, ao qual era reconhecida até mesmo a possibilidade de instituir monopólios estatais7. As exceções ao princípio da livre iniciativa, portanto, haverão de estar autorizadas pelo próprio texto da Constituição de 1988 que o consagra. Não se admite que o legislador ordinário possa livremente excluí-la, salvo se agir fundamentado em outra norma constitucional específica.8

Note-se desde logo que não há norma constitucional que autorize o estabelecimento de controle prévio de preços no âmbito do mercado. Apenas a atuação repressiva do Poder Público está constitucionalmente prevista, nos termos do art. 173, § 4º da Carta9, a ser desencadeada a partir da apuração da prática de ilícitos em decorrência do abuso de poder econômico. É por essa razão que boa parte da doutrina rejeita qualquer forma de controle prévio de preços, como é o caso de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que registrou expressamente: Page 5

"É o caso para tocarmos num exemplo de grande importância, do controle estatal de preços. Essa prática, largamente utilizada no autoritarismo econômico, durante várias décadas neste País, mas tão prejudicial à competição, tão incompatível com uma política de desenvolvimento (hoje, princípio constitucional - art. 3º, II), tão perigosa pelas distorções que gera (como nos casos dos planos 'Cruzado' e 'Verão'), teve seu fim, com muito atraso, na Constituição de 1988. Não será mais possível à burocracia incompetente fazer demagogia com preços.

A intervenção regulatória nos preços não exclui, todavia, a modalidade sancionatória, sempre que se caracterizarem as transgressões previstas no art. 173, § 4º, casos em que o Estado estará autorizado a intervir vinculada e motivadamente." 10

Tal ponto de vista, embora bem fundado e trazendo a autoridade de seu autor, não corresponde à minha convicção doutrinária, como já assinalado. Penso ser preciso conceder que, em situações excepcionais, o controle prévio de preços poderá justificar-se, com fundamento nos próprios princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. Será este o caso quando esta medida extrema for essencial para reorganizar um mercado deteriorado, no qual esses dois princípios tenham entrado em colapso e não mais operem regularmente. De qualquer sorte, ainda nessa hipótese, o controle de preços somente será considerado legítimo se obedecer a um conjunto de pressupostos, que serão examinados adiante.

Cabe, nesse passo, uma breve anotação sobre a teoria dos princípios e como eles se inserem na ordem jurídica como um todo. Como já assinalado, nenhum princípio é absoluto. O princípio da livre iniciativa, portanto, assim como os...

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