Leis originariamente inconstitucionais compatíveis com emenda constitucional superveniente

AutorProf. Celso Antônio Bandeira de Mello
CargoTitular da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo
Páginas1-22

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  1. A questão que nos propomos a abordar refere-se ao seguinte interessante tema de alta indagação teórica: Disposição legal que viola materialmente as normas de uma Constituição será ou não "recepcionada", "convalidada" ou meramente validada por Emenda Constitucional , caso seu regramento seja compatível com as disposições novas estabelecidas pela Emenda ?

    De passagem, anote-se que não se está a por em pauta o tópico, muito amplamente versado na doutrina, relativo à compatibilidade de norma originariamente inconstitucional com nova Constituição. O que se quer examinar é o mesmo problema em face de Emenda Constitucional, assunto, este, bem menos discutido que o anterior.

  2. Registre-se, de saída, que ambas são questões visceralmente distintas, pois nova Constituição significa ruptura com a Constituição precedente, já que a nova não encontra seu fundamento de validade na anterior, não se reporta, de direito, a ela, prescinde radicalmente daquela que a precedeu e a submerge por inteiro. Page 2

    Diversamente, uma Emenda Constitucional, modifica, mas não rompe com a Constituição anterior, não perime a Lei Magna antecedente. Precisamente o inverso: continua com a anterior Constituição, encontra nela seu fundamento de validade, a ela se reporta e nela se integra, não afetando a persistência da ordem jurídica de que faz parte. Dessarte, reponta um laço incindível entre a Emenda e a Constituição emendada, do que resulta uma solidariedade jurídica entre os termos antigos e os novos de um só e mesmo Documento Fundamental.

    Tratando-se, pois, como visto, de questões distintas, para o desenvolvimento do assunto que nos propomos a versar é desnecessário determo-nos sobre aquele que não está sob o presente foco de atenção. Isto, contudo, não nos pode liberar de tecer algumas considerações genéricas relativas a sobrevinda de Constituições novas e seus efeitos, para fins de realçar a diferença que apresentam no que concerne a Emendas.

  3. Uma vez que uma Constituição é a inauguração de um sistema sem conexões jurídicas com aquele que o antecedeu, perempto o sistema anterior, tudo que a este pertencia, que nele se estribava e dele derivava, em princípio, teria que desaparecer. Donde, todas as normas infra- constitucionais precedentes, em tese, deveriam desaparecer, porque sua relação de pertinência, sua referibilidade - em uma palavra: o suporte que lhes infundia e proporcionava existência jurídica - deixou de existir com a sobrevinda de nova Constituição.

    Sem embargo, sabe-se que, mesmo perante a sobrevinda de uma nova Constituição, as normas infra-constitucionais preexistentes nem por isto perimem. E considera-se que não perimem mesmo quando a Constituição posterior se omite em ressalvá-las, isto é, mesmo quando deixa de oferecer-lhes explicitamente seu suporte de validade, declarando-as acolhidas.

    A razão deste entendimento é puramente prática. É o imperativo de mantê-las vivas para superar a dificuldade gigantesca de ter que começar a legislar da estaca zero. Daí a interpretação corrente, absolutamente generalizada, segundo a qual a Constituição nova,Page 3 implicitamente, "recepciona" regras anteriores a ela e com ela compatíveis, as quais passam a se fundamentar no sistema novo, sendo certo que as incompatíveis perimem "ipso jure". Registre-se, de passo, que não se está aqui a cogitar da questão paralela de saber-se qual o destino das leis que nasceram defeituosamente em face da Constituição anterior, isto é, que padeciam de invalidade (ou seja, eram inconstitucionais), mas que são compatíveis com a nova Constituição (pois este não é o objeto ora "sub examine").

    Do que foi dito já se verifica que a persistência de normas infra- constitucionais anteriores a nova Constituição não é uma implicação lógica, ou seja, não é derivada da aplicação de um raciocínio abstrato que reclamasse tal conclusão. Pelo contrário, o raciocínio abstrato conduziria a conclusão oposta. É a necessidade concreta - e o Direito é concebido em função de necessidades práticas e operativas - que leva ao expediente de haver como "recepcionadas" normas pre-existentes.

  4. Já na hipótese de Emenda Constitucional, o fenômeno é outro, pois o sistema não está rompido, a Constituição continua em vigor e portanto persiste sendo a fonte de validade de quaisquer normas. Assim, em face de Emendas não há sequer porque propor o tema da continuidade das normas anteriores, isto é, o tema da "recepção" visto que não comparecem as razões que infirmariam as leis precedentes. Em suma: elas não teriam porque ser "recepcionadas", pois no sistema estavam e nele continuam.

    Frisa-se tal ponto para exibir que a questão que nos propomos a defrontar concerne a um tópico desligado do tema da pertinência de uma norma a um dado sistema e sua "recepção" em outro. O que entra em pauta não é, pois, a questão da prorrogação da "existência" de uma norma (por via de "recepção"), mas exclusivamente o tema da validade dela, já que, embora incompatível com dicções constitucionais precedentes, apresenta-se, entretanto, como compatível com as dicções novas introduzidas pela Emenda.

    Assim, o assunto cogitável é outro, completamente distinto daquele até o presente referido. É o de saber-se se, em tal caso, as disposições da Emenda trazem consigo (ou não) o efeito de vir a ofertar um Page 4 "suporte de validade", "a posteriori", para leis originariamente inconstitucionais, vale dizer, para leis que surgiram em descompasso com o texto anterior, o alterado.

    O fenômeno como se vê, também não é, (ou ao menos não necessariamente o seria) o da "convalidação", pois esta tem sempre efeitos retroativos.

  5. Dessarte, enquanto não completada a discussão sobre a superveniência de fundamento de validade para regra que dela presumidamente dantes carecia e firmada uma conclusão sobre seus efeitos, mantém-se irresoluto um problema que, em tese, comportaria as seguintes quatro alternativas de resposta :

    1. uma regra que não foi, no passado, oficialmente reconhecida - e pelos meios próprios - como inconstitucional, é existente e válida desde o início, pois sua invalidade dependeria de haver sido constituída no pretérito; logo, se antes os termos da Emenda nada se lhe pode censurar, seria um sem-sentido pretender recusar-lhe, no presente, uma validade que nunca deixou de ter;

    2. a regra acoimada de originariamente inconstitucional, ainda que efetivamente o fosse, se compatível com a Emenda, fica retroativamente validada, porque passou a estar de acordo com a Constituição e não se pode considerar inconstitucional aquilo que, no presente, se encontra afinado com ela;

    3. a regra originariamente inconstitucional, se compatível com a Emenda, dela receberá um fundamento de validade "a posteriori", entretanto, só oferecerá esteio para seus efeitos a partir da própria Emenda, seja pelo simples princípio da irretroatividade, seja porque, a ser de outro modo, franquear-se-ia a burla ao próprio sistema, efetuável mediante produção de leis inconstitucionais em antecipação a Emendas futuras ou, dito pelo inverso, bloquear-se-ia o reconhecimento de inconstitucionalidades graças ao expediente de produzir emenda sucessiva, o que representaria uma fragilização do sistema;Page 5

    4. a regra originariamente inconstitucional continua a padecer de inconstitucionalidade, pois a lisura de um ato - pertencente a um mesmo sistema constitucional - pelo necessário respeito à sua integridade absoluta deve ser sempre apreciada ao lume das normas do tempo em que foram produzidas. Se assim não fosse, tal como observado no item anterior, estar-se-ia reconhecendo que o sistema assume, admite e conforta, de antemão, a validação de burlas a si próprio, o que seria ilógico e inadmissível; donde, reconhecer validação "a posteriori" - mesmo que não retroativa - seria contemporizar com tal desrespeito.

  6. A primeira das alternativas é a que demanda, para sua análise, maiores detenças, pois sua sustentação depende de conceitos objeto de funda controvérsia doutrinária. Envolve a definição de posições sobre os temas da "existência" e da "validade" de uma norma e traz consigo a concepção de que ambas se reduzem a uma coisa só, motivo pelo qual à invalidação se atribui natureza "constitutiva" - e não declaratória.

    Ou seja: entende que, enquanto uma norma não for expulsa do sistema pelos meios previstos, ela é, só por isto, válida. Logo, descaberia considerar inconstitucional determinada regra que esteja dentro do sistema, ficando, pois, liminarmente excluída a hipótese de pretender negar-lhe a admissibilidade.

    Verifica-se, então, que seu exame obriga a tecer considerações quer sobre o tema da "existência" (ou "pertinência" de uma norma a dado sistema), quer sobre o da "validade". Implica tomar posição quanto a serem ou não coisas distintas, sendo este o ponto de partida para sopesar a procedência ou improcedência desta alternativa exegética ante o problema das possíveis conseqüências de compatibilidade de uma dada norma com Emenda Constitucional superveniente.

  7. O entendimento segundo o qual um ato é "válido" enquanto não for expelido do sistema, pois validade e existência são uma coisa só, atrela-se ao pensamento de KELSEN, segundo o qual:Page 6

    "Com a palavra «validade (Geltung)» designamos o modo de existência específico das normas" 1 ou ainda :

    "Esta validade de uma norma é a sua específica existência ideal. O fato de que uma norma «seja válida» significa que existe. Uma norma que não «seja válida» não é uma norma, por não ser uma norma que existe"2.

    Daí sua conclusão de que falar-se em lei inconstitucional - antes que órgão autorizado para expelir a lei assim o decida - é um sem-sentido, pois a declaração de inconstitucionalidade é sempre constitutiva.

    Esta intelecção, que no passado pareceu-nos verdadeira, ainda que jamais a houvessemos sufragado por escrito, conquanto a tenhamos expendido verbalmente muitas vezes - e que, em rigor, se encontrava...

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