O pai entre conduta e função: uma leitura psicanalítica

Autor1.Sonia Alberti - 2.Maria Helena Martinho
Cargo1.Coordenadora do Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – RJ, e membro da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano - 2.Coordenadora do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Veiga de Almeida – RJ; professora e supervisora de estágio da Universidade Veiga de Almeida
Páginas332-354

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Introdução

Freud ensinou* que os sintomas neuróticos são conseqüência do complexo de Édipo. Lacan outorgou ao complexo de Édipo um valor estrutural, falar de complexo é falar de estrutura. Em seu primeiro texto, Os complexos familiares , de 1938, encontramos os fundamentos disso: “a família não é dominada por comportamentos biológicos, mas estruturada por complexos simbólicos” (LACAN, 1987, p.19).

Já nesse texto de 1938, Lacan mostra o essencial do pai para estruturar a relação entre a mãe e a criança, ao mesmo tempo em que ele o distingue radicalmente de seu lugar na família paternalista, que estaria vivendo seu ocaso em função da supervalorização de determinado papel social do pai que cria e modifica a imagem paterna e “se produz pelo crescimento relativo, muito chamativo na vida americana por exemplo, das exigências matrimoniais” (idem, p.60). A identificação de o que é essencial do pai com o papel do pai no contexto social dificulta a distinção entre o que se espera de um pai e o que é o pai como função.

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Um caso

Carlos 3 assaltava casas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, e foi preso aos 16 anos de idade. Durante as entrevistas com sua psicanalista, ele espantou-se ao relatar sua conduta no último assalto: liderava o grupo e, como o dono da casa começou a passar mal, mandou que um membro de seu grupo não só buscasse o remédio cardíaco da vítima como ainda exigiu que lhe trouxesse água, e filtrada! Esse comportamento deixou os membros do grupo estarrecidos, como também o próprio sujeito, pois, em tempos tão bem descritos por Rubens Fonseca, estamos mais para comportamentos do tipo Delamare do que do tipo Spalanzani 4 . Carlos, na realidade, assaltava as casas da Zona Sul à procura de seu pai que, conforme história sempre contada e recontada pela mãe, havia sido um rapaz da Zona Sul pelo qual ela se apaixonara. Tiveram um caso amoroso que ela quis selar com um casamento, razão de não só ter engravidado como ainda mantido o bebê. Ela queria levar o rapaz ao altar, mas não conseguiu, e ele, Carlos, era o resto daquele encontro que, por mais que houvesse fracassado, fora muito bom enquanto durara. Carlos, assim, buscava seu pai nos homens mais velhos em suas casas na Zona Sul, e se surpreendeu ao dar-se conta de um gesto amoroso em troca de algum amor: uma demanda ao pai que buscava. Entretanto, Carlos só pôde procurar o pai, porque, em algum lugar, há seu registro, o pai de Carlos existe e se inscreveu como Nome-do-Pai no simbólico, o que faz de Carlos um adolescente semelhante à maioria dos adolescentes, quer dizer, um adolescente à procura de um dos nomes do pai.

Com efeito, em 1974, ao escrever seu prefácio à edição francesa de O despertar da primavera do dramaturgo Frank Wedekind, Lacan observava que o adolescente pode encontrar um dos nomes do pai em personagens que já não são seu pai mas, por algum motivo cultural, podem orientar o seu desejo. Tal é o caso da figura mítica da Dama Branca, do Homem Mascarado que o adolescente do texto de Wedekind encontra no cemitério e do chefe de família da Zona Sul que Carlos buscava durante seus assaltos.

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Há sempre um hiato grande entre o pai e o seu ideal, por melhor que seja o pai, assim como há sempre algo que não responde à demanda do sujeito, demanda que, conforme Lacan teoriza, é sempre demanda de amor. É porque há esse hiato que o sujeito pode desejar. Só desejamos o que nos falta, já dizia Sócrates a Agatão, no Banquete , de Platão (cf. o diálogo entre Sócrates e Agatão, no início da segunda parte: 199-200, p.731). A não resposta à demanda de amor dá margem ao surgimento do desejo. Esse é fruto da função paterna, que se teoriza como conseqüência da inscrição do Nome-do-Pai no sujeito, inscrevendo a Lei do Desejo a metaforizar o próprio desejo da mãe, e distingue-se do que comumente conhecemos sob o signo da “conduta do pai” ou, ainda, do “papel do pai”, mesmo se esse último aponta para o saber do senso comum da importância do pai para uma criança.

A psicanálise, por definição – pois se volta para a singularidade de cada sujeito –, denuncia todas as tentativas de pensarmos parâmetros de conduta enunciados a priori e universalmente. Alerta ela para o fato de que essas tentativas são normalizadoras, quando não adaptativas – com o que abafam, justamente, o desejo que singulariza.

Por outro lado, é interessante notar que, na intersecção com o campo da Educação, mais bem se especificam as diferenças entre o papel do pai e a função paterna. Antes de mais nada, isso pode acontecer somente porque os estudiosos da Educação se preocupam em verificar o papel do pai, até mesmo historicamente. É nessa contribuição que nos inspiramos para introduzir nossa questão. Fa-lo-emos com o auxílio da construção do conceito de paternidade, conforme a história de nossa cultura no contexto da Educação, a partir de um resumo baseado na pesquisa de Maria da Glória de Rosa (2000) que pode se mostrar bastante útil.

Antes do papel social do pai, o pai soberano: um rápido resumo

Não pretendemos aprofundar noções e conceitos sobre a posição histórica e social ocupada pelo pai na civilização. Utilizaremos apenas algumas pontuações extraídas desse campo do saber que, sem sombra de dúvida, forneceu valiosa contribuição para a construção da tese psicanalítica sobre a função paterna. É com o único intuito de assinalar o contexto de tais contribuições que retomamos dele algumas indicações preciosas para o desenvolvimento que se segue.

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Inicialmente, o imperador romano ( pater patriae ), os senadores ( patris ) e os nobres ( patriai ) encarnavam a paternidade instauradora do laço social. Ela era fundadora, essencialmente não pelo sangue, mas pela palavra “paternal” ( sermo patrius ), que fazia do pai o mestre a se dirigir a seus filhos – os súditos –, sustentado na verdade do sofrimento desses mesmos filhos à procura de leis que lhes garantissem a existência. Eis por que instaurava o laço social: o pai era o próprio sustento da lei.

Dessa primeira acepção de pai como soberano, deduz-se a paternidade familiar. Por ser o soberano político e religioso, o pai era o chefe. Ao desposar uma mulher e fazê-la mãe, o soberano fazia-se pai de tal criança, autorizava-se pai, reconhecendo-a como filho. Na Odisséia , Penélope e Telêmaco aguardam fielmente Ulisses, com saudade e respeito. É por assim aguardarem Ulisses que, tanto a esposa quanto o filho, fazem valer a lei do pai, apesar de todas as dificuldades. Assim também Sócrates diz: “És tão sábio que não percebes que mais do que a mãe, o pai e todos ascendentes é respeitável, a Pátria é mais venerável, mais santa, mais estimada dos deuses e dos homens sensatos?”(apud DE ROSA, 2000, p.41).

Podemos observar pela narrativa que esses pais-soberanos retratavam heróis que viveram no início da História, espécies de semideuses a articular virtudes fundamentais, como: valentia, prudência, lealdade, hospitalidade, e que, com Homero, sofreram tendência a ser transformados em seres como nós. Entretanto, isso sempre se levando em conta que a versão maior do pai é a de pátria e que o pai maior é o pater patriae , o imperador, pois o pai, como soberano, é sustentáculo do discurso ético e encarna o ideal que o discípulo deverá seguir na sua trajetória de vida, porque assim também poderá ocupar esse lugar um dia.

A pólis caracterizava-se por entrelaçamento nas esferas da ética e da política, e a universalidade situava-se no nível da idealidade da Ordem e do Bem, da qual se deduzia o modelo de uma pólis ideal. Já, em Aristóteles, há articulação entre ética e política, em um mesmo saber prático. A pólis não é ideal, mas é o finalismo do Bem que unifica ética e política, segundo a razão de o que é melhor e justo para o indivíduo: “[...] formação de caráter, dinâmica dos hábitos – ainda mais, ação em vista dos hábitos, do adestramento, da educação” (LACAN, 1959-60, p.20). Isso também passa a influenciar a própria ética do legislador. No livro V, dedicado à educação dos jovens, Aristóteles afirma que:

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[...] o legislador deve ocupar-se antes de tudo com a educação dos jovens, ninguém o contestará, pois, nos Estados onde ela é negligenciada, as constituições sofrem prejuízo. Como o objetivo do Estado todo é um só, está claro que a educação deve ser uma só, a mesma para todos, e o cuidado dela é comum, não particular, como nos dias atuais em que cada um cuida dos seus filhos, dando-lhes em particular a instrução específica que lhe pareça boa (apud DE ROSA, 2000, p.50, grifo nosso).

A lógica do pater patriae sustenta a educação do cidadão, pois articula as virtudes ao mestre mais poderoso, mais virtuoso e que melhor pode sustentá-las. Aos poucos, com o decorrer dos séculos, essa função soberana – da Pólis – e do legislador passou a figurar nos textos como preocupação agora do pai.

Algo se modifica no legado da função paterna, quando se lê a obra de Cícero, pensador romano (106-43 a.C.), que se dirige a seu filho Marcus, em De officiis (Dos Deveres). Cícero traça um programa de estudos para seu filho e um ideal de vida que ele gostaria de vê-lo realizar:

Há um ano, querido filho Marcus, você vem recebendo lições em Atenas [...] não considero tudo isso suficiente à sua educação. Por isso, aconselho-o a fazer o mesmo que fiz para minha utilidade pessoal [...]. Por esta razão, meu filho, exortoo a ler com a máxima atenção, não somente meus discursos forenses, mas meus trabalhos filosóficos (apud DE ROSA, 2000, p.63).

Ainda:

Tomando a decisão de, no momento, escrever um ensaio, ao qual seguirão depois outros trabalhos dirigidos à sua instrução, acreditei conveniente começar por um tema, a meu ver,...

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