O papel do uso de metáforas na luta por novos direitos

AutorLivio Osvaldo Arenhart
CargoDoutor em Filosofia - PUCRS. Professor do programa de pós-graduação em direito - Mestrado, da URI; coordenador do Curso de Pedagogia do<i> campus</i> Santo Ângelo, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões; professor do Instituto Estadual de Educação
Páginas201-217

Page 201

Introdução

Este é um texto de filosofia da linguagem, de caráter expositivo, enquadrado no campo de pensamento do neopragmatismo contemporâneo2 . Nele, pressupõe-se que, na atualidade, a conquista política de novos direitos por um grupo emergente se faz simultaneamente à constituição da identidade social desse grupo, o que, por sua vez, requer que ele “tome a palavra”, a fim de exigir para si direitos que não teve anteriormente. A “autoridade semântica” sobre si, por parte de um grupo social, é condição de possibilidade para a construção de uma outra identidade moral para si mesmo e para a sociedade (RORTY apud GHIRALDELLI Jr., 1999, p. 66). NaPage 202filosofia contemporânea da linguagem, particularmente em sua vertente neopragmática, é admitido que essa autoridade semântica de um grupo sobre si pode ser construída, de modo eficaz, pela “re-descrição de nós mesmos, dos outros e do mundo”, pela apresentação de narrativas e metáforas (GHIRALDELLI Jr., Op. Cit., p. 61-62)3 . Com isso, justifica-se a conveniência de pensar a articulação entre luta por direitos e uso de metáforas.

1 Desconstrução do conceito tradicional de metáfora

Para explicitar o papel do uso de metáforas na invenção de direitos, cabe rejeitar inicialmente o conceito tradicional de metáfora. Em sua definição tradicional, a metáfora é algo assim como uma imagem vestindo uma idéia ou uma cobertura de um bolo. Segundo tal entendimento, a metáfora tem “duas faces: um conteúdo poético e um conteúdo subjacente, literal – um certo significado que revelaria a intenção subjacente do autor” (GHIRALDELLI Jr., 2002, p. 72); “seria a maneira de descrever as coisas de uma forma que, uma vez clarificada, analisada, traria a verdade, o essencial. A metáfora teria uma mensagem a ser decodificada, ... teria um conteúdo cognitivo, podendo ser explicada”. (GHIRALDELLI Jr., 2006, p. 5).

A noção tradicional de metáfora opunha ao sentido literal das palavras e sentenças um “outro sentido”, chamado “sentido metafórico”. Donald Davidson, um dos melhores representantes do neopragmatismo contemporâneo, ataca a afirmação de que “metáfora tem, além de seu sentido literal, outro sentido ou significado” (DAVIDSON, 2001, p. 245). Não há na metáfora a distinção e oposição entre sentido ou significado (sense or meaning) literal e sentido ou significado não- literal (Id. p. 245). “As metáforas significam o que significam as palavras em sua interpretação mais literal, e nada mais” (Id. p. 245). “Uma metáfora nada diz fora de seu significado literal (e quem a constrói nada diz fora do literal, ao usá-la)” (Id. p. 246). Richard Rorty, subscrevendo essa tese de Davidson, comenta que, para este, é errado interpretar a expressão “uso metafórico da linguagem” como se ela indicasse que em nossa linguagem está já simplesmente dada (vorhanden) uma multidão de “significados metafóricos”, ao lado da multidão de “significados literais”. EmPage 203consonância com Davidson, Rorty escreve que, de acordo com a concepção tradicional, “a metáfora não pode ampliar o espaço lógico, pois aprender a linguagem é ter aprendido já todas as possibilidades da metáfora assim como todas as possibilidades de fato” (RORTY, 1993, p. 30)4 . Assim, de acordo com a concepção tradicional, a linguagem não muda mediante a invenção de metáforas, pois, no quadro dessa concepção, a fala metafórica não é entendida como invenção, mas simplesmente como “utilização de instrumentos já disponíveis”, para fins heurísticos e ornamentais (Id. Ibid.). Pelo uso de metáforas, nada de efetivamente novo se criaria na linguagem, “pois, mesmo o que não fosse literal, o puramente metafórico, seria apenas um modo diferente de dizer o que, em essência, seria literal” (GHIRALDELLI Jr., 2002, p. 72).

2 Concepção neopragmatista da linguagem e da metáfora

Para entender bem a destruição davidsoniana-rortiana do conceito tradicional de metáfora, convém levar em consideração a concepção neopragmatista de linguagem, a que Davidson e Rorty se filiam. De acordo com essa concepção, “o que há entre linguagem e mundo é o mesmo que há entre todas as coisas do mundo: apenas relações causais. Não há relações representacionais” (GHIRALDELLI Jr., 2002, p. 66).

Uma vez que as descrições do mundo não espelham o mesmo, não tem mais cabimento perguntar se uma descrição é mais ou menos acurada que outras, se re-presenta ou espelha mais ou menos a “realidade” (RORTY, 1988). Uma descrição do mundo “é um ato causal, provocado por outro ato causal, que pretende responder ao mundo de uma maneira melhor ou pior”, a partir de um ponto de vista pragmático (GHIRALDELLI Jr., 2002, p. 66). Conseqüentemente, as palavras estão a nosso dispor do mesmo modo que as ferramentas: “umas servem melhor para algumas coisas e outras servem melhor para outras coisas” (Id. Ibid.).

A concepção causal e pragmática da linguagem não admite a dualidade “essência-aparência” ou, nos termos de Davidson, a “dualidade esquema-conteúdo”Page 204(GHIRALDELLI Jr., 2002, p. 43. 70). Para quem se orienta por tal concepção, não existe algo assim como a característica não-relacional de um X, não existe uma natureza intrínseca, a essência de X. Por isso, não é possível uma descrição de X tal qual X realmente é, “em si”, fora da sua relação com as necessidades, consciência e linguagem humanas (GHIRALDELLI Jr., 2002, p. 43). Conhecer X, ou seja, dispor de uma descrição de X, significa estar apto a fazer algo com X ou para X, significa estar apto a pôr X em relação com outra coisa (Id. Ibid.).

Contrariando até mesmo a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, “Davidson rompe com o pressuposto kantiano de que existe algum tipo de ruptura ‘metafísica’ inviolável entre o formal e o material, o lógico e o psicológico, o natural e o não-natural – em resumo, entre o que Davidson chama ‘esquema e conteúdo’” (RORTY, 1996, p. 231)5 . O rompimento com esse pressuposto kantiano implica o abandono da suposição de que a linguagem que falamos atualmente é, por assim dizer, toda a linguagem existente, toda a linguagem de que podemos necessitar. Sem esse pressuposto, também não há mais como legitimar o objetivo que Husserl e muitos filósofos analíticos contemporâneos estabeleceram para a filosofia, que é o de “projetar todo o espaço lógico possível, tornar explícita nossa compreensão implícita do âmbito da possibilidade”, mediante “um labor de clarificação, de tornar explícito, pacientemente, o que tem estado implícito” (RORTY, 1993, p. 29).

Por outro lado, o projeto cientificista que atribui à Filosofia a tarefa de “tornar explícito um esquema, ou um núcleo de possibilidades permanente e neutro, situado no transfundo6 de todas as nossas indagações e práticas”7, é invalidado pelo conceito neopragmático de “significado”8 . De acordo com esta concepção, os significados das expressões lingüísticas “não são essências platônicas nem noemata husserlianos, mas antes padrões de uso habitual – o que Sellars denomina ‘papéis lingüísticos’” (RORTY, 1993, p. 31).

De acordo com esta concepção, que remonta a Quine9 , o âmbito dos significados ou padrões de uso habitual é “uma área ‘clareada’ relativamente pequena na floresta do uso, uma área cujos limites se estendem e ganham constantemente” (RORTY, 1996, 225-226). Segundo Quine, “as extensões internas da ciência, elegantemente formuladas, são um espaço aberto na floresta tropical, mediante a eliminação de tropos”, isto é, de metáforas, metonímias e sinédoques (apud RORTY,Page 2051996, 225-226). Quine distingue conceitualmente o crescimento da linguagem (e nossa aquisição dela) pelo uso de tropos do refinamento posterior, que é o próprio discurso cognitivo.

Neste ponto, Quine é seguido por Davidson: “A metáfora pertence exclusivamente ao âmbito do uso” (DAVIDSON, Op. Cit. p. 246)10 . Para Davidson, há uma estrita distinção entre significado e uso (RORTY, 1993, p. 30). Também para ele, “significado” só tem um papel “dentro dos limites bastante estreitos (ainda que mutantes) da conduta lingüística regular e predizível – os limites que delimitam (temporalmente) o uso literal da linguagem” (RORTY, 1996, p. 225). Levando isso em conta, compreendem-se as afirmações do tipo: “A metáfora pertence exclusivamente ao âmbito do uso” e “Devemos deixar de lado a idéia de que uma metáfora transmite uma mensagem, de que tem um conteúdo ou significado (exceto, desde logo, seu significado literal)” (DAVIDSON, Op. Cit. p. 246. 259). Com base nisso, compreendese que Davidson tenha atacado “a tese de que a metáfora leva associado um conteúdo cognitivo definido que seu autor deseja expressar” (Id. p. 261). De acordo com Rorty, dizer que a metáfora “pertence exclusivamente ao âmbito do uso” é o mesmo que dizer que, “como as metáforas (enquanto continuam vivas) não são parafraseáveis, estão fora da zona clareada”, fora do âmbito do conceitualmente clarificado ou explicado (RORTY, 1996, p. 226).

Cumpre notar que, para reconhecer ao uso de metáforas um papel criador, não é necessário adotar essa oposição conceitual de Quine e Davidson, entre significado e uso. Os pensadores que concebem a linguagem como uma rede, consideram significado e uso como co-extensivos; deste pressuposto deriva que “o uso de um predicado em uma situação nova, em princípio, muda, ainda que pouco, o significado de toda outra palavra e frase da linguagem” (HESSE apud RORTY, 1996, p. 226). De acordo com esta concepção, a mudança imperceptível, mas contínua do significado, é comparável aos efeitos gravitacionais dos movimentos de partículas muito pequenas e distantes. Os físicos não devem dar atenção às perturbações acessórias e centrar-se nas regularidades relativamente notáveis e...

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